Páginas

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Recomeços, renascimentos

Mais um ano se finda e um novo período se inicia. Para todos nós, 2014 foi interessante, porém difícil. Pesado. Corrido. O ano passou por nós sem que conseguíssemos passar por ele. A cavalo, trotando rápido; parecia que era uma fera sem rédeas… Não podemos, entretanto, de todo reclamar.

Foi um ano de novas oportunidades, de novos aprendizados. De novas percepções da vida. Esse final de ano, que acabou acumulando muitas energias (positivas e negativas) explodiu numa catarse de emoções indefiníveis e não possíveis de ser mensuradas e qualificadas. Foi uma explosão, por assim dizer. E, já que estamos catando pouco a pouco os cacos para chegar 2015 menos quebrados, se me for possível eu gostaria de partilhar de uma reflexão.

Esse final de ano foi, pelo menos para mim, muito revelador. De que eu precisava mudar de atitude, ter mais firmeza na voz e no olhar, não (me) enganar e me esforçar para que houvesse mais amor, fraternidade e afeto. Houve muitas dessas missões com as quais falhei, feio e rude. Houve outras missões que consegui cumprir com zelo, gozo e entusiasmo até o fim, até dar cabo. No geral, foram experiências todas válidas, aprendizados inestimáveis, conhecimentos que não se adquirem apenas com o intelecto.

Foi numa das missões falhadas que uma fenda se abriu em mim. Uma fenda que, talvez, possa ser um portal para um novo tipo de conduta e de atitudes. Sim, meus queridos, eu fui uma pessoa contraditória e incoerente, que defendia um paradigma de vida e executava outro completamente diverso - quem, em vida, não se pegou numa contradição desse tipo? Magoei pessoas, apaguei histórias, tornei tudo mais turvo, obscuro e cinza. E quem que nunca cometeu uma patacoada dessas que atire a primeira pedra…

Desde então, surgiu uma (nova, mais uma) oportunidade de reflexão. “Poxa vida, será que é isso mesmo? Que sou assim e não vou mudar? O que será?” Várias foram as perguntas que passaram na minha cabeça desde então. Por que sou assim? Quando que comecei a agir assim? Qual é a minha questão? Por que eu sou esse problema?

Nesse tempo, algumas questões submergiram. Outras ainda estão no limbo do subconsciente.

Quando eu parti para uma tentativa sincera de autorreconhecimento, eu senti um pouco de medo. De me reconhecer naquela forma nefasta e não querer me identificar com aquilo. Mas um ponto a analisar: eu não sou a forma nefasta que se apresenta em público. É só mais uma de minhas muitas máscaras, que uso por ter medo de ser eu. Medo de ser eu. Medo de ser eu.

Medo de ser eu, um temor que me persegue desde muito tempo. Desde a infância, quando eu não podia ser o moleque chorão porque homem não chora, e eu já era “hominho”. Desde a adolescência, quando eu - preto, não oriundo de favela porém pobre, com dificuldade de dicção - procurava ter algo de relacionamento e todas as meninas que eu desejava me desdenhavam. O que concluí, então? Que o problema era eu. Euzinho. Eu não tinha como ser eu mesmo porque eu não sabia ser eu mesmo. Eu não sabia, apenas seguia um certo padrão - ou tentava seguir; pelo menos no Colégio, até a sétima/oitava série (8º e 9º ano atuais do Ensino Fundamental), havia um desejo pela imitação, pela cópia de quem parecia que “dava certo” lá. Quem eram os “tops”; quem ficava com todas as gurias; quem ia nas festas; quem era popular e reconhecido nos corredores como “os caras”. Uma mímese, uma tentativa de imitação barata de quem, hoje reconheço, não cabia e nem valia a pena imitar. (Contemporâneos meus de Colégio entenderão isso.)

Havia um pequeno nicho de identidade em mim, mas não se sobressaía. Eu ainda sentia um pouco daquela opressão de querer ser igual aos outros, mesmo que isso me anulasse. Mesmo que isso gerasse um apagamento do meu jeito de ser, de olhar, de falar. As reprimendas (inconscientes) foram muitas, e de alguma forma eu ainda (mesmo com 28 anos) as sinto. Percebo-as em vários momentos, em várias situações; mesmo assim, faltava um pouco mais de vontade e coragem para encará-las de frente. Uma encruzilhada se revelava para mim. Eu, que sempre estimulo os outros a tomar as rédeas das suas vidas; que sou deveras confidente e confiante em perceber as especificidades e necessidades dos outros; eu, que me ocupava mais dos outros que de mim, fui fraco em admitir que sou fraco. Uma carapuça de fortaleza eu coloquei, e usei como se fosse meu potencial energético de vitalidade. “Sou foda”, diria eu num momento de ego inflado. E não é que eu não seja bom naquilo que faço, mas um bom ego que se preza vai se alimentar de uma vaidade de querer ser visto e reconhecido e vai ofuscar outros elementos igualmente importantes no trato humano - como o amor.

Há várias, várias definições para essa palavra de quatro letras. Prefiro a definição que tem a ver com ter o outro (o alter) em mais alta conta, com o mais alto grau de afeto e sensibilidade; simples e suave coisa que nos amadurece, diria João Ricardo (Secos & Molhados). Vários nomes tentam defini-lo, várias pessoas tentam nominá-lo. Eu apenas sinto e não sei definir… Tem várias formas de mostrar amor, afeto, carinho e sentimentos afins - fico me perguntando, seriamente, qual deve ser a minha concepção de amor, visto que ando tão desastrado e atrapalhado na sua forma de demonstrar que… sei lá, rola um cansaço, mas não me faz desistir de encontrar um caminho.

(Não leve em conta o último trecho, pessoa; estou em um momento de chacoalhamento espiritual, logo algumas coisas aqui podem te soar confusas mesmo.)

O que fazer então diante de tal quadro internamente desesperador? O que fazer quando vem alguém e lhe arranca a máscara, jogando-a fora e encarando você como deveria acontecer? Há duas saídas: ou você busca de volta a máscara e a veste de novo ou esquece dela e tenta encarar a vida sem ela. Mais fácil a primeira alternativa (da qual eu várias vezes, preteritamente, já fiz uso), porque dá conforto e tranquilidade de você continuar do jeitinho que está, sem se preocupar com nada; você não tem que mudar nada porque você não aparenta nada para mudar, não é? Então, continuemos do jeito que está. Agora, optar pela segunda saída é difícil. Exige uma das coisas mais difíceis, que nem Freud consegue explicar tamanha dificuldade nisso: olhar para nós mesmos. (Brincadeira: com certeza Freud, Jung, Lacan e cia. têm, sim, explicações que nos revelam por que não conseguimos olhar para nós mesmos.)

Imagine-se numa casa. Do lado de fora toda pintada, arrumada e ajeitada. Quem passa do lado de fora deve pensar que aquele é um local muito agradável, gostoso de permanecer. Para você ter acesso à casa, você precisa ter acesso ao dono da casa - e, se do lado de fora ela parece um lugar fofo, por dentro ela pode parecer a casa da velha dos gatos dos Simpsons: uma zona. Sofá estragado, chão sujo, móveis empoeirados, lixo acumulado e uma pessoa maluca toda hora dizendo “num repara a bagunça, não”. (Quando a pessoa diz isso aí que mais reparamos, né?) Pode ser que a pessoa esteja mudando os móveis de lugar, fazendo um faxinão (daqueles que se faz no fim do ano), consertando algumas coisas dentro de casa para poder estar tudo organizado novamente. Isso é bom; ruim quando essa bagunça é permanente - desorienta qualquer um que chega para tomar pouso ou tomar um café. Faz com que o visitante se sinta deveras incomodado e parta sem ter mais previsão de volta.

Hoje, eu tenho que admitir que a minha “casa” está zoneada, mas que não ficará assim ad eternum. Tô precisando mudar algumas coisas de lugar, descartar os lixos sentimentais, abrir as janelas para deixar as luzes entrarem. Pode não parecer, minha gente, mas eu adoro receber visitas! Principalmente das pessoas que nos amam, que nos querem bem. Tem aquele negócio também que, quando você e a visita se tornam íntimos, você vai meio que se “descuidando” da casa, não tendo tanta preocupação assim de tê-la limpa, porque a visita vai entender que você esteve atarefado fora ou preocupado demais em recepcioná-la, daí nem lembrou de pelo menos passar um pano no chão… O acostumar-se a uma condição é pernicioso, porque pode fazer com que a casa vire uma eterna bagunça. As visitas podem se sentir intimidadas e não mais querer visitar sua humilde residência. Você diz que vai limpar a casa só para recebê-las; mas ao passar do tempo vai, novamente, deixando a casa em segundo plano, porque outros planos estão em primeiro lugar - as visitas, por exemplo; tanto de receber quanto de ir visitar.

Peguei essa metáfora para tentar evidenciar essa metamorfose que anda acontecendo comigo. Eu perdi uma visita (que estava quase fixando residência já), dessas que você adora receber em casa, porque meu cantinho tava uma confusão que só. E eu deixando de lado, deixando de lado, deixando de lado. E deixando de lado. Os entulhos foram se acumulando aos montes. A poeira foi só aumentando. Ficou intragável de receber as pessoas. Ficou impossível de essa visita entrar. Desde então, minha missão foi de olhar para a casa e dizer: “é hora de arrumar essa bagunça”.

Não hei de comentar aqui que passos dar para isso. Apenas estou arrumando. Haja força para poder começar. Olhar para si mesmo não é uma tarefa simples. Espero que 2015 seja o ano da casa arrumada. Que você possa vir me visitar, até mesmo fixar residência se quiser, com a residência transmutada em lar. Estarei inteiro para te receber.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Uma juventude, várias juventudes

Não é à toa que, atualmente, o termo "juventude" virou "juventudes", com S no final, pluralizando o termo. Porque, realmente há vários tipos de juventudes.

Há os jovens que estão na batalha do dia-a-dia, que acordam todos os dias e trabalham no sol, na chuva, no frio, no asfalto, no morro e garantem o mínimo da sobrevivência. E que, para além de garantir o próprio pão, batalham para conseguir o salve do resto da galera. Há uma pá de gente nessa condição que eu poderia citar, mas, para não fazer injustiça com quem eu porventura me esqueça, vou falar genericamente. São homens e mulheres, pretos, pardos, brancos, de origens diversas, que não estão meramente preocupados/as em guardar sardinha somente para a sua lata, mas de repartir o peixe entre todo mundo. É uma galera que visa pensar na coletividade, que está próximo de quem quer transformar para a melhor o mundo, a quebrada, a rua. Que quer promover a sociedade para o bem estar coletivo, não umbigoide. Se existe uma preocupação, é coletiva e repartida; é coletivizada e priorizada; ela critica, quer melhorar o mundo, é utópica e pragmática ao mesmo tempo.

Bloco das Pretas, coletivo de feministas negras de Belo Horizonte que usam o batuque
como denúncia ao racismo, ao machismo e à misoginia.

Já tem outros que se aproveitam do berço para arrotar competência. Boa parte da vida foi repleta de completude, de bonança e bem-aventurança (não apenas no sentido cristão, óbvio). Há a juventude que se cola no discurso de querer representar a todos e a todas, mas se incomoda de ter que sair do ar condicionado para ir à batalha. São jovens que fazem a agenda de outros jovens não na rua (como provoca o prof. Paulo Carrano), mas nos ares condicionados. São jovens que se vestem, ou melhor, se travestem de descolados, mas representam o duro conservadorismo de suas respectivas linhagens. A Turma do Chapéu é um notório exemplo disso. De uma juventude descolada de uma sensibilidade social, que vive numa bolha limpa e cheirosa, repleta de "sucesso" e meritocracia. De uma galera que galga altos postos nas instâncias políticas por causa de quens-indicam. De um povo, digo, de uma galera, melhor dizendo, de uma turma que esquece das demandas reais das juventude. Essa turma não me representa.

Gabriel Azevedo, outrora membro da JPSDB-BH, mas ainda da Turma do Chapéu.
Ao seu lado, o comentarista Reinaldo Azevedo.

Nada mais apropriado do que pluralizar o termo, passando de juventude para juventudes. Os chapeleiros são UMA juventude, nós somos OUTRAS juventudes. Eu tô do lado de cá, você tá de qual lado?

De que lado você vai sambar?


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Suscitando desamizades

Desamigar-se de alguém significa, pelo menos para mim, não ter mais uma relação de amizade e/ou companheirismo com alguém. É distanciar-se a ponto de tornar aquilo que era um sol aconchegante numa mera estrela situada a mil (ou milhões) de anos-luz.

E política é uma coisa que tem me feito ganhar desamigos.



Entendo que política, no senso comum, está no rol daquelas coisas que não se discute, como religião e futebol. E aceitamos essa determinação cultural numa boa, sem um questionamento mais válido, sem perguntar "de onde que veio isso?". A resposta pode estar num certo conformismo de não querer ser contrariado, de continuar sua vida de maneira confortável na sua apatia político-intelectual.

Não, isso não é necessariamente ruim. Enquanto brasileiros, nós mesmos sustentamos isso, acreditando que política, religião e futebol não podem ser discutidos saudavelmente numa roda de conversa. Porque as três coisas são alvo de passionalidades irracionais, que beiram às catarses agressivas e a desentendimentos que podem se tornar grosserias.

Bom, eu não tenho hábito de discutir a fé dos outros - no sentido estritamente religioso; eu tenho dificuldades em aceitar que existem pessoas que se submetem a religiões de matriz cristã - Catolicismo e Protestantismo, basicamente - a ponto de não enxergar outros pontos da curva. Sim, ainda me mantenho cristão, mas crítico; talvez haja um lócus no qual eu me encaixe quanto a isso, e talvez não, eu seja meramente mais um outsider da religião. Tenho dificuldades grandes em discutir certos temas com quem acredita que tudo - da morte à vida - só tem uma única explicação.

Do mesmo modo, eu não vou querer converter um torcedor atleticano em fiel seguidor do Cruzeiro Esporte Clube. Ou tornar um flamenguista botafoguense. Times são tanto escolhas quanto condições das nossas vidas - a priori, não se escolhe torcer por um time (eu disse A PRIORI), mas essa escolha pode se dar racionalmente depois, "virando a casaca" como se diz no popular. Já vi cruzeirense virar atleticano e atleticano virar cruzeirense, e isso faz parte da dinâmica de reconhecimento do que cada um curte, gosta, vibra.

Agora, quando o assunto é política, eu me encontro numa verdadeira encruzilhada. Por muito pouco, muito pouco mesmo - opiniões de quem não compartilha do mesmo espectro ideológico do meu -, eu fiz questão de agredir um colega meu de Colégio pelo simples fato (simples nem tanto, mas...) de não compactuar da minha opinião. Na verdade, não era o fato de ele não compactuar que mais me irritou, mas de querer "falar mais alto", ditar a sua opinião como a única alternativa de interpretação possível da realidade. Por outro quinhão menor, apontei o dedo na cara daqueles que eu considerei reacionários e coxinhas. Agredi verbalmente aqueles que não demonstravam a mínima abertura para o que eu estava dizendo. Moral da história: fiz desamizades.

E continuo fazendo essas desamizades por entender que não podemos ser Politics Free em um ano de tanta comoção eleitoral como 2014 - essa comoção já vinha desde 2013, naquelas inexplicáveis catarses de 50, 100, 800 mil pessoas nas ruas nas Jornadas de Junho. Diga-se de passagem, a intolerância e a indigestão aos coxinhas já surgira daquela época, quando fui elaborando a minha interpretação dos fatos à medida que eles iam acontecendo. Eu não tive condições de me distanciar do fato - coisa de Historicismo Analítico Puro - para poder avaliá-lo. Era ali e naquele momento. Acusei de coxinha quem ia de branco; rechaçava tentativas da galera fascistoide que queria um protesto sem bandeiras; questionava o povo (de) branco que pedia paz e uma manifestação "sem vandalismo" a despeito da barbarização que o Estado de Minas Gerais fazia por meio da sua Polícia Militar.

Tudo ao mesmo tempo e agora.

E não me aguento com o fato de ter que conviver neutro, sem poder externalizar as minhas crenças. Sem poder opinar e ouvir opiniões alheias. Talvez nem sejam as opiniões diversas da minha que me incomodam, mas uma postura arrogante de senhorio da verdade - que eu, inclusive, acabo encabeçando. Já tive diálogos deveras ricos com quem, mesmo em posição completamente contrária à minha, se sentia com tranquilidade para debater. Agora, tem outros que, na boa, dá vontade de bater ou exterminar. Sem meias palavras, galera, eu não estou aqui hoje querendo "ponderar".

Só que aí eu caio em um risco duplo: de me isolar e de anular o outro, de quem necessito para ser... eu. Só posso me reconhecer naquilo que o outro pode não ser. Pelo o que ele é, reconheço o que não sou - e é justamente isso o que tem que me balizar na hora de eu me encontrar enquanto discursante de um ponto de vista. Sem um outro, não tem eu - ah, bruta flor da alteridade...

Respeitar a alteridade, entretanto, não significa aceitar tudo do outro "de bom grado". Eu já fui um garoto submisso na infância, na adolescência e no início da juventude - e, por conta da trajetória que fui traçando na minha vida, hoje me dou conta que não preciso mais ficar neutro e inerte por conta de um acontecimento ou de uma discussão.

Mas como não ser neutro e inerte sem ser grosso e arrogante? Porque - podem perceber pelo tom da minha escrita - eu me encontro neste momento como uma pessoa irritadiça, arrogante e presunçosa. Sim, presunçosa, também. Que presume que o que o outro me traz só é bom se for bom para mim. Estou publicamente assumindo isso e ligando o foda-se se você vai achar isso bacana, simpático, desinteressante ou equivocado.

E peço sinceras desculpas àqueles que, por um motivo ou outro, não se sentem mais à vontade ao meu lado por causa desse meu tipo de postura. Peço a vocês um pouco de paciência, eu vou azeitando as engrenagens aos poucos. Como eu disse, já fui muito submisso em tempos de outrora - agora, o prato da balança está pendendo para o outro lado. Eu busco o equilíbrio, mas ele só vem se eu reconhecer que há em mim um desequilíbrio.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Quando a poesia se torna sinestésica

Sinestesia: é a relação de planos sensoriais diferentes: Por exemplo, o gosto com o cheiro, ou a visão com o tato. O termo é usado para descrever uma figura de linguagem e uma série de fenômenos provocados por uma condição neurológica.

Existem certas coisas no universo que não cabem numa explicação simples - seja racional ou espiritual. E nisso se inclui as diversas sensações que tenho ao ouvir o Clube da Esquina - volume 1. É, o disco com os dois guris na capa e que se transformou numa referência no mundo da música. Arte de pessoas de Minas.



Não vou me debruçar em falar das especificidades técnicas do disco, isso todo crítico já faz. O que quero dizer é de como esse disco aparece, desaparece e reaparece na minha playlist de maneiras tão espontâneas que sequer me dou conta se estou com ele ou não no celular, no MP4, no notebook ou em outra plataforma.

Criador de uma estética que até hoje é alvo de imitação de muitos artistas, até hoje não vi o Clube da Esquina ser atingido em seu nirvana máximo. Há cantores, cantoras, grupos e afins que chegam muito próximo - assim como aquele matemático maluco de um filme do Darren Aronofsky, que insiste em descobrir o último algarismo do numeral Pi. Inatingível, mas por que isso acontece?

Vou contar a experiência que tive hoje, muito simbólica e única - e não serve como explicação única para esse sentimento.

Saí do meu trabalho um tanto atrasado para outro compromisso. Atravessei a avenida em busca de uma música para poder aliviar o cansaço do dia - e, procurando por álbuns no celular, me vem o Clube da Esquina. "Tudo o que você podia ser" começa a tocar e aquela vontade de gritar surge na garganta. A música te chama a uma luta, consigo mesmo, de mudança de paradigmas - ou não. É uma canção que impulsiona, que te joga para frente. Assim como "San Vicente" (mais conhecida popularmente como Coração Americano), que é uma balada inabalável (com o perdão do trocadilho que o Skank usa em uma de suas músicas). Claro, "Nada será como antes" amanhã, a famosa música daqueles que desejam mudanças plenas, nada adiáveis - no máximo até o dia seguinte. Outra música impactante.

O engraçado é que, quando chegam as músicas mais lentas (Dos Cruces ou Cais, por exemplo), eu passo para a frente, buscando alguma coisa mais animada no random. São lindas, excepcionais, mas minha vibe hoje era de coisas mais animadinhas. Ao entrar na estação do metrô, tocava "Trem de Doido", uma guitarra low-fi sujona, estridente e belíssima. Coincidiu de eu estar ouvindo essa música quando o metrô chegou na plataforma. Achei isso de um simbolismo tão extremo e singelo que resolvi registrar isso aqui.

E por causa desse episódio, me detive mais em ir observando as outras músicas do disco e fui sentindo certa energia que não conseguia explicar senão pela definição de sinestesia que coloquei acima, neste post. Milton e Lô conseguiram (claro, junto com toda a patota do Santa Tereza) elaborar um sentimento que se configura pela mistura de sensações - que acaba sendo até meio surrealístico não no sentido da inexistência, mas no do Realismo Fantástico, do qual Murilo Rubião foi um deveras excelente herdeiro. Versos como "o meu pensamento tem a cor do seu vestido" são provas de que só é possível concretizar tais imagens se e somente se entrarmos em sintonia com o surreal, com um deslocamento do real palpável para um real onírico. "Um girassol da cor do seu cabelo" me parece muito isso - e me faz lembrar "A casa do girassol vermelho", que é justamente do Murilo Rubião.

Depois desse insight noturno, consigo enxergar - de maneira mais sinestésica e gostosa e menos técnica e crítica - essa obra do cancioneiro nacional. Não estou aqui para ser técnico, estou aqui meramente deixando meu coração bater sem medo.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Sobre elevadores e bananas

Demorei para reagir aos comentários sobre a campanha #somostodosmacacos. A bem da verdade, fiquei mais away que o Gil Bróder esse fim de semana e perdi o fio da meada. Mas, na noite de ontem, pude compreender o contexto da situação. Em suma: Daniel Alves, do Barcelona, jogando; jogam nele uma banana; ele vai e come a banana; a comoção nacional toma conta e uma campanha é lançada, dizendo que somos todos macacos. Aí, vêm as vozes da dissonância, dizendo que não somos macacos. Mas, peraí, qual é o motivo de toda essa confusão?

Pode ser que o ato do Daniel Alves de comer a banana tenha sido um protesto irônico. Tristeza mesmo foi o que se seguiu. Uma branquelada que nunca tomou geral na vida se "afirmando" enquanto macacos para contribuir na luta contra o racismo.

Como diria Renato Russo, "isso é uma contradição em termos".

Presta atenção, rapaziada e moçada. Jogar uma banana para alguém (geralmente negro) implica, histórica e culturalmente, atribuir à pessoa uma simbologia: de que aquela pessoa a quem você joga a banana é um... macaco. Sim, a gente tem na nossa cabeça, psicossocialmente falando, a imagem atribuída de que quem come banana é macaco. E que macaco, segundo as leis de Charles Darwin, são seres vivos anteriores a nós no processo evolutivo. Se são anteriores no processo evolutivo animal, significa dizer, por conseguinte, que macacos são "inferiores" aos seres humanos. Eis o primeiro erro (erro primário, eu diria) de promover uma campanha com as pessoas se atribuindo à imagem de macacos: elas se julgam inferiores, menores, "sem importância" dada a posição na qual o homem se coloca frente à escala evolutiva. É isso mesmo, não é? O homem não é o ser que, por ter consciência, se considera mais evoluído que os outros do reino Animalia?

Pois bem. Dado esse ponto, vamos ao segundo ponto - e talvez o mais invisível porque existe uma cegueira social (inconsciente, eu diria) que não consegue enxergar que... o racismo existe, oras! Sim, caríssimo Gigante Que Acordou Mas Voltou a Tirar a Soneca, essa coisa de discriminar o outro pela cor ainda existe na nossa Pindorama de Vera Cruz - por mais que Gilberto Freyre diga o contrário. Se eu estou, por exemplo, discursando num púlpito público e alguém me joga rosas, eu socialmente considero isso como um ato de carinho e afeto. Se me jogam um sapato, vou considerar que estou desagradando.

Se me jogam uma banana, estão me chamando de macaco. Se me chamam de macaco, significa dizer que me chamam, conforme a teoria acima exposta (do Darwin), de "raça inferior". Para se ter alguém que considere o outro "inferior", é necessário que haja alguém que se encontre em posição de "superioridade". Oras, inventamos, então, com dominantes e dominados, uma relação de poder! Veja bem! Daí, posso inferir, de acordo com o que eu expus aqui, que jogar uma banana é um ato racista. Porque considera o outro como macaco - e, para quem ainda não sabe, sempre se atribuiu ao negro (o dominado) pelo branco (o dominante) a figura do macaco. Do preto que parece macaco. Nunca vi nenhum neguinho branco (sem trocadilhos) sendo humilhado de macaco. Macaco, meus caros, é humilhação, não é brincadeira.

É humilhação porque é um tratamento que te deixa inferiorizado a outra pessoa. Não existe relação de equidade quando você coloca o outro como inferior. Quando você tem o dedo apontado e te chamam de toda a sorte de vexames, como macaco, cabelo-de arame, cabelo-duro - Itamar Assumpção tem uma ótima canção sobre essa questão. Por isso, onde que se chamar de macaco pode ser uma forma de combater o racismo, que se manifesta justamente em chamar o outro de macaco? É usar veneno para cuidar da moléstia causada pelo veneno. Uma retórica sem fundamento retórico. Pura coisa de miolo-mole, melhor dizendo.

Daí, refletindo sobre essa questão, vendo opiniões de vários amigos (que postaram textos pró e textos contra a campanha), me lembrei de uma questão que eu tenho observado com frequência e que traduz a persistência do racismo como elemento cultural brasileiro: o elevador.

As primeiras vezes que reparei nessa questão foi depois de ouvir "Identidade", esse pagode deveras excelente interpretado pelo Jorge Aragão. A questão do racismo é evidenciada na música a partir do momento que se coloca em questão (ou xeque) a existência do elevador de serviço e do elevador social. Os mais antigos que nos falam que os serviçais (faxineiros, empregadas, etc.) só podiam se utilizar do elevador de serviço para transitar nos prédios onde trabalhavam. (Em vários desses prédios ainda existe a Dependência Completa de Empregada - DCE, que nada mais é que a reprodução da senzala no século 21; mas isso fica para outro texto.) Fico pensando, fazendo essa relação entre elevadores e bananas, se usar o elevador de serviço aumenta em alguma coisa a significação da luta contra o racismo.

A música me faz lembrar da figura do Preto de Alma Branca, do capataz mulato que segue as ordens do feitor eurodescendente. E de como essa figura ainda é numerosamente grande na sociedade.

Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade

O feitor implementou a campanha #somostodosmacacos e o capataz seguiu obedientemente as ordens. Acho que, por uma inconsciência coletiva ou por uma cegueira social, faltou perceber que os principais promotores da campanha são pessoas que com toda a certeza não sofreram do racismo, da discriminação que pessoas como eu passam cotidianamente. E quem seguiu com a campanha não percebeu que se colocou numa posição inferior e, sim, de racismo. Não faz diferença o feitor pegar o elevador de serviço, mas será que dá na mesma se o capataz pegar o elevador social?

Pense nisso. E pense também que luta contra racismo se dá na subversão da ordem - não na conformação e aceitação dessa ordem. Aceitar e mostrar uma banana é engolir em seco esses quinhentos anos de perversão que é o Brasil.

Em tempo: o Idelber Avelar mandou avisar que tem blog novo na área, que vale a pena ser lido: o blog do Paulo Cezar Caju, um dos pretos mais aguerridos no futebol e, sim, tem histórico no combate à opressão. O blog chega num momento deveras importante no qual queremos mais Caju e menos Pelé.



sábado, 8 de março de 2014

Para onde Beagá se MOVE? - parte dois: a inauguração



Então vamos lá. Hoje, 8 de março, é o dia que o MOVE entrou em operação em BH. Como vocês podem ver pelas fotos, a Estação São Gabriel - a primeira a operar o sistema, as outras vão entrar em operação a partir de abril - está prontinha, prontinha, com toda a estrutura feita para receber os passageiros da Região Norte que queiram se deslocar para o Centro, para a Savassi ou para os Hospitais. Sim, porque está previsto, da São Gabriel, saírem ônibus do MOVE apenas para essas três regiões.









Enquanto eu procurava a plataforma para embarcar no ônibus parador (83P), um moço mais velho me interpelou. "Tá bonito isso daqui, né, rapaz?" Eu fui sincero: "Não achei não, moço. Num tá pronto ainda.." Ao que ele me replicou: "Pois é, né, mas tinha que inaugurar antes mesmo, o prefeito não pode inaugurar na eleição". Boa pontuação do seu moço.

Me dirijo então à plataforma do 83P e todo do ônibus. No interior, a Alterosa filmava a operação do motorista e os passageiros (Mãe, vou aparecer no SBT!). Ao meu lado, sentou um moço que é um dos guias da BHTRANS que têm por função orientar os passageiros. Perrguntei se havia um quadro de horários disponível para que pudéssemos ver os horários de partida. "Bom, nesse daqui ainda não tem, mas nos outros deve ter". Deve ter. Fiquei pensando nisso: nem quadro de horário tinha no coletivo e o ônibus já estava em plena rodagem.

Ao meu outro lado, tinha um estagiário da Prefeitura. Fiquei curioso, porque vi que o interior do MOVE é bem menor que os antigos carros articulados que as linhas de Venda NOva - 61, 62 e 64 - tinham antigamente. Perguntei quantos passageiros cabiam sentados. "Olha, no total cabem 130". "Sim, mas sentados cabem quantos?" "Ah, cabem uns quarenta passageiros sentados". Tive que me conter porque um busão daquele tamanho comportar somente 40 pessoas sentadas é muita pachorra para pouca competência. Então quer dizer que, no MOVE, dois terços das pessoas que o tomarem (num total de 130) viajarão em pé. Isso é conforto, Brasil?

Bom, é primeiro dia, né? Vamos ver como o barco anda.

sexta-feira, 7 de março de 2014

E para onde Beagá se MOVE?

É essa a pergunta que faço diante do falacioso mito do BRT-MOVE como salvação do transporte urbano em Belo Horizonte.

Há vários aspectos que eu poderia pegar aqui e discorrer sobre, mas vou me ater a um em especial que me deixou deveras incomodado: o fato de o princípio de funcionamento do MOVE não ser nada inédito.

A BHTRANS divulgou que o Move irá funcionar como ligação entre as estações-integração e as regiões Central e Hospitalar. No sábado, dia 8, três linhas começam a roda a partir da Estação São Gabriel - 83 Paradora, 83 Direta (que vão até o Centro) e 82 (que vai para os Hospitais).

Se você pegar o mapa de funcionamento do Move, vai ver claramente uma coisa: ele é unidirecional - só liga a estação-integração a uma região. O sistema não permite que haja comunicação inter-regional para além do que está proposto - quer um exemplo? Até agora eu não vi previsão de interligação entre estações-integração - entre São Gabriel e Pampulha, entre Pampulha e Vilarinho, entre Vilarinho e São Gabriel. E o que mais grita nos meus olhos: esse tipo de sistema já existe em Belo Horizonte desde a implementação das Estações BHBUS. Se você (diferentemente dos gestores e do presidente da BHTRANS, sr. Ramon César) anda de ônibus pela cidade, vai perceber uma grande semelhança entre o MOVE e o sistema atual vigente de conexão entre as BHBUS e as demais regiões da cidade.

O que 83P, 83D e 82 vão fazer, 61, 62, 63 e 64, na Estação Venda Nova, já fazem; 32, 33, 34 e 35, na Estação Barreiro, já fazem; 30, 3050, 3052 na Estação Diamante já fazem. A única coisa diferente é que os ônibus são articulados e possuem estações de transferência ao longo do caminho, em substituição aos tradicionais - porém não superados - pontos de ônibus.

Tem uma coisa diferente, sim: o MOVE custa 46 milhões de reais por metro.

E o doido do Márcio Lacerda já está pensando em expandir o sistema - que tem tudo para falhar. Porque é a reprodução pura e simples de algo que já existe, não é uma novidade. Lembro-me de 1998, quando houve a grande última mudança geral no transporte da cidade - com a criação das Linhas Perimetrais (de final 50 e de cor alaranjada), das Linhas Circulares/Alimentadoras regionais (de três números e amarelas) e com a mudança em grande parte da numeração das linhas antigas. Com três meses de antecedência, a BHTRANS teve a preocupação de mobilizar TODA A CIDADE para a grande mudança que ia acontecer.

Talvez seja esse o motivo de a BHTRANS e o SETRA, sindicato das empresas de ônibus, não terem se preocupado em comunicar com a cidade sobre o MOVE - ele não é nenhuma novidade mesmo...