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quinta-feira, 25 de julho de 2013

A noite dos 105 anos. Ou, melhor dizendo, o Cuca merece.

Como disse uma amiga minha no Facebook, "narrativas épicas merecem coroação". E, sim, o Atlético merece ser coroado.

Porque tem como técnico um cara que custou acreditar em si mesmo - e só agora, somente agora, depois de ser vice-campeão da Libertadores pelo Fluminense, vice-campeão brasileiro com o Cruzeiro, vice-campeão brasileiro com o Atlético, só agora ele desvirginou. Somente agora conseguiu mostrar a que veio. Não, meus caros, não é o Vítor o nome da noite, mas Alexi Stival Beludo.

Dessa vez, o Cuca não cucou. Graças a ele, graças a todos.


Cuca é um técnico que, quem conhece do futebol sabe bem, tem seus desequilíbrios, suas faltas de fé, seus vacilos. Foi isso que não o deixou ter confiança suficiente para crer em si mesmo. Mas, graças ao Atlético, ao apoio e suporte incondicional que a torcida deu ao Cuca, ele botou fé. Acreditou que, diferentemente das outras vezes, ele não iria "cucar".

Eu fiquei "encucado" (no sentido de ficar me questionando) por que raios o Fluminense dispensou o Cuca quando ele foi vice da Libertadores; e por que raios, mesmo fazendo o excelente trabalho de colocar o Cruzeiro na Libertadores de 2011, ele foi demitido de lá. Faz-nos refletir até mesmo sobre o quanto nós confiamos no trabalho dos outros (mesmo com todos os erros e acertos) e em nosso próprio trabalho. Dava para ver que anteriormente o Cuca era emocional e psicologicamente desequilibrado. Porque ninguém botava fé nele. Daí, você até poderia realizar que a mistura entre um time que há muito não ganhava um título realmente expressivo (o último foi o Campeonato Brasileiro de 1971) com um técnico considerado pé-frio poderia dar merda. Deu merda, mas para os outros.

Que fique claro: o time do Atlético merece todas as palmas hoje, madrugada de 24 para 25 de julho de 2013. Merece o devido reconhecimento nacional de que foi, sim, o melhor time em campo na Libertadores. Que fez, sim, uma campanha surpreendente - esse é seu primeiro título internacional desde a Taça do Gelo, na década de 50. [UPDATE: Carlos Bolívia me lembrou dos dois títulos que o Atlético tem da Comebol em cima do Olímpia. A Libertadores, então, seria o quarto título internacional]. Mas o nome da noite é o Cuca. A imagem da noite, para mim, não será o Léo Silva vibrando com o último pênalti. Não será a entrega da taça. Mas aquele momento no qual Cuca, o técnico borra-calças, o desacreditado, o pé-frio, ao ter a certeza de que foi campeão da Libertadores, deita-se no gramado do Mineirão, numa espécie de oração muçulmana, um rito de passagem, uma devoção. Cuca foi devoto do pessimismo e da má-sorte, mas ele conseguiu se levantar e também poder dizer: eu acredito - em mim. Porque tem gente que acredita em mim. Então, eu vou acreditar em mim. Vocês acreditam? Então eu também acredito.

O homem da noite que consagrou o Atlético. Claro, teve ajuda de uns psicólogos, também... Complexo de inferioridade não sai da pessoa da noite para o dia.

E é assim que o Cuca passa de um líder que treme nas bases nos momentos decisivos para um combatente que vai ao front sem medo da batalha. E que consagra um time que tem 105 anos de importante história em Minas Gerais mas que, como Cuca, tinha complexo de vira-lata - mesmo tendo um galo como mascote. "O Atlético é sofrido, o Atlético é azarado. E eu também. Nós quebramos isso tudo", disse ele. E que bom que quebrou, Cuca.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Da escrotidão voluntária

Alex Teixeira era um cara de muitas posses. Rico, mesmo, daqueles que esbanjam dinheiro e prata por todos os buracos. Mas, assim como o dinheiro e a prata, Alex esbanjava outra coisa - essa, um tanto quanto mais nefasta e nociva.

Alex, administrador, trabalhou por um tempo como gerente numa fábrica num interior dessas Minas aí - não sei se era Piracema, Pitangui, Piranguinho, Potomaio... Sei lá, só sei que era uma grota; sabe, aqueles lugares onde Judas chegou para descansar porque perdeu as botas no meio do caminho? Pois é, mas o que sei é que era uma cidadezinha tão simpática, tão bonitinha... Dava dó ver uma pessoa como Alex frequentar um espaço como aquele - você vai entender o que quero dizer logo adiante: Alex é uma pessoa que contamina, no mau sentido.

Nesse interior, enquanto trabalhava de gerente da "firrrrma" (ah, o R puxado do interiorrr de Minas é tão bonito...), conheceu uma moça. Delicada e meiga, Rosa ficou interessada do rapaz assim que chegou à cidade. Um burburinho se fez quando Alex chegou - né por nada não, mas o cara era realmente bonito, sabe, meio Alain Delon com James Dean e Marlon Brando (ainda magro). Causou comoção a chegada dele, moças suspiravam, cochichavam o nome dele nas rodas, mas nenhuma tinha coragem o suficiente para chegar nele.

Rosa não fugiu à regra, e resolveu investir no rapaz. Foi investindo daqui, conversando com um amigo de lá, ouvindo conselhos da mãe até que um dia - TUFF!, os dois se encontraram. Começaram a se ver com frequência, passear, tomar sorvete - tudo, antes das 21 horas, porque o pai da Rosa, seu Irineu, era um daqueles matutos duros de dobrar. Nossa Senhora, ô homem difícil de lidar, gente! Não era dado à conversa, mas nunca maltratou ninguém que a gente saiba. O cabra pode ser turrão, mas mal educado? Jamais.

Rosa e Alex começaram a namorar. Noivaram. Casaram. E resolveram se mudar para Belo Horizonte, a capital. Vocês lembram que eu disse que Alex era um cara riquíssimo? Pois é, nos arredores dessa cidade aí onde ele conheceu a Rosa (ai, memória, funciona... era uma cidade indo lá para Araxá, qual que é o nome do diabo da cidade?), ele comprou, antes de casar, uma senhora fazenda. Grande. Imensa. Naquela época que eles casaram, a cana tava em alta, e ele resolveu aplicar os trocentos alqueires em cana. Mas bobo que ele não era, não ficou só na cana, não. Vai que desgasta a terra, né? Resolveu plantar milho e criar gado, também. Era um mar de cabeças de boi que ele tinha - e só boi do fino, só gado Nelore, só coisa de rico, mesmo. Vendia e comprava gado com uma facilidade tal como eu consigo comprar balas na padaria da esquina (quer dizer, antigamente era mais fácil, eram 3 balas por 10 centavos, agora com a crise... xiiii... por isso eu tive que ir às ruas em junho, só dá pra comprar bala agora com 20 centavos! Ó que absurdo...). Alex era rico, mas não era boa gente. Não mesmo.

Quando o Alex resolveu se mudar da cidade pequena para a roça grande, ele comprou um apartamento no metro quadrado mais caro de BH: o bairro de Lourdes, perto da Praça Marília de Dirceu. Ele tinha grana, né, queria impressionar... E comprou o dito cujo. E fez uma surpresa à Rosa, que ficou maravilhada ao ver o tamanho do apê. Ela, que estava acostumada aos pequenos muquifos, às casas pequenas, à humildade do interior, ficou embasbacada com aquilo. Foi o primeiro de muitos embabascamentos que se seguiriam.

Alex, como te disse, não era flor que se cheire - como a Rosa. Na fazenda, ele era conhecido entre os peões como "Alex Mão de Ferro", por causa da sua condução deveras intransigente das coisas que aconteciam no latifúndio. Teve uma vez (olha o naipe...) que aconteceu de ter aparecido um ladrão de gado lá pelas roças dele. E a fazenda dele serve de passagem para outras fazendas e roças menores do entorno. Você acredita que ele chegou a fechar a passagem do pessoal que vai pras outras fazendas com uma corrente, colocou um cadeado e não fez cópia pros outros fazendeiros? Gente, isso foi um tumulto na época! Dona Maria das Graças, fazendeira vizinha, ficou pê da vida e apelou com o Alex. Dona das Graças, uma vez, passava de noite voltando da cidade pra roça quando se deparou com o correntão lá bloqueando o seu caminho. Dona de um temperamento super apimentado e forte, das Graças emputecidamente foi até a sede da fazenda dele e começou a gritar, para todo mundo ouvir:

- SEU FILHO DA PUTA DESGRAÇADO! QUER ME DEIXAR FORA DE CASA, HOMEM PERTURBADO?

(Achei o termo "homem perturbado" bem adequado para definir o sujeito.)

Alex, naquele jeito dele de "eu sei que estou certo e fazendo as coisas que eu acredito serem as melhores sob o meu ponto de vista", explicou o motivo da corrente. E que não tinha feito a cópia porque a chave ficava não com ele, mas com o caseiro.

- Ah, dona das Graças, sabe como é, né?, eu sou muito ocupado e aí não tive como fazer a cópia. Dei lá a chave pro Lalau e falei pra ele guardar com ele.

- E pediu pra fazer cópia?

- Ah, pedi não, sabe, não acho prudente. Vai que qualquer um desatento perde a chave e aí eu fico vulnerável, sabe? Eu não posso ficar vulnerável, tem um tanto de gado aqui e já me roubaram um tanto que eu tenho que ficar cabreiro, sabe?

- Alex, eu preciso passar aqui para chegar lá nas minhas terras, o outro caminho é precário! Porra, vai amarrar uma chave?

- Uai, das Graças, eu tenho que proteger meu patrimônio...

- Melhor proteger a sua cara, que vou moer ela de porrada!

E partiu para cima.

Não era a primeira vez que Alex sofria (merecidamente, diga-se de passagem) algum tipo de agressão. Mesquinho demais com os outros, só pensava nas suas posses. Sua esposa, como eu tinha dito, era uma pessoa que era mais familiarizada com as pequenas coisas da vida - mas ficou muito magoada quando viu seu projeto de jardim na entrada da casa principal dar lugar a um insólito muro de alvenaria. Alex mudara a entrada da fazenda arbitrariamente e, como Rosa só frequentava a fazenda uma vez por mês, ficou indignada.

- Meu amor, mas cadê o jardim?

- Ah, Rosa, sabe?, eu tive que tirar o jardim porque a gente tava vulnerável, sabe, e eu não poderia deixar a casa exposta e...

- Vulnerável? Como, se o Lalau fica aqui na casa do lado sempre de olho... Lalau é de confiança, cê sabe disso...

- É, Rosa, mas nesse mundo não se pode dar brecha, né, tem que resgardar a nossa casa, que é o nosso investimento.

O sangue de Rosa talhou.

- Mas meu jardim...

E Alex atalhou:

- Seu jardim já era! Fiz o que eu tinha que fazer e pronto.

Rosa emudeceu. Passou todo o final de semana sem conseguir emitir uma palavra. Sua vida de simplicidades dava lugar à temeridade do resguardo das posses e domínios de Alex. Não conseguia ser feliz como antes.

Rosa murchara, perdera o brilho e o viço que a mantinham viva ao longo dos anos.

Alex queria filhos, mas a mágoa de Rosa foi tanta que um câncer se alojou entre o ovário e o útero. Deus sabe o que faz, né, já pensou que sacanagem o Alex ter filhos e ele criar desse jeito tão medonho?

O câncer avançou e se alastrou pelo abdome. Rosa tinha que ser submetida a um agressivo tratamento combinado de químio com rádio. Isso, além das vitaminas que tinha que tomar para recompor o organismo, dos corticoides para aliviar a dor, dos analgésicos, anestésicos e tudo o mais que a Medicina Ocidental provê.

Alex gastou boa parte do seu patrimônio, que ele tanto ficou de usura para proteger. Rosa não morreu, mas nunca mais foi Rosa - só sobraram os espinhos.

O resultado da história eu acho que dá pra vocês imaginarem, né?



segunda-feira, 8 de julho de 2013

Que horas são?

Todo dia, Daniel costumava fazer seu ritual habitual: acordava, tomava banho, escovava os dentes, tomava café, dava um beijo na esposa, pegava a valise com os papéis do escritório, pegava a chave do carro, dava a partida no carro, abria a garagem pelo portão eletrônico, saía do prédio, despedia-se do porteiro, fechava o portão, seguia ao trabalho.

Ele sempre estacionava num estacionamento próximo do trabalho. Já combinou com o cara de lá para pagar um mensal de 250,00 pela vaga. Chegava para trabalhar às 9h30, saía invariavelmente às 19h. Trabalhava em um escritório de contabilidade - ou seja, a parte mais chata quando você tem dinheiro. Várias declarações de imposto de renda já passaram pelas suas mãos. Vários clientes importantes já passaram pelo escritório onde trabalha, de sobrenome tão nobre quanto nome de cartório em Belo Horizonte. Porque em Beagá, saiba: se você tem cartório, é porque você é um fodão. Não é qualquer um que tem culhões suficientes para ter um cartório. Olha só o sobrenome: Triginelli; vê lá se isso é sobrenome de mortal? No mínimo, o sobrenome de um italiano que chegou ao Brasil e, às custas de seu trabalho (leia isso com duplo sentido), conseguiu ganhar alguma coisa na vida. Tem um rico empresário na cidade que é de origem italiana, tem lá seus amigos na política e conseguiu ficar mais rico do que já é graças ao seu trabalho (leia isso com duplo sentido). A empresa desse moço da Itália também tem conta no escritório de Daniel.

O escritório de Daniel ficava num imponente prédio espelhado de 25 andares na região centro-sul. Próximo à saída do prédio, sempre tinha um moço que ficava sentado na porta, contemplando sabe Deus o quê. Era um moço não muito velho, já devia ter seus quarenta anos, mas talvez a vida nas ruas tenha-lhe precocemente envelhecido o corpo. Porém, o espírito não caducara. Saía sempre à cata de algum material que pudesse encaminhar ao ferro velho e fazer uma graninha com ele. Sabe como é, colaborar em casa. A casa dele nada mais era do que a marquise de um prédio vizinho ao de Daniel; de praxe, ele costumava chegar perto da portaria e tentava abordar alguém. De praxe, sempre tinha um armário de dois-por-dois, também conhecido como "segurança", que barrava o contato dele com o mundo dos negócios do qual Daniel vivia.

E o segurança nunca deixava o moço se aproximar. Seja temendo que ele invadisse o prédio, seja porque achasse que ele não era uma pessoa que devesse frequentar aquele espaço.

Num dia desses, Daniel saiu da sua rotina. O carro foi pro conserto e resolveu ir de ônibus. Ao chegar perto do seu trabalho, sob a desproteção de um segurança que somente atua na portaria de um prédio cheio de executivos, o moço que está nas ruas abordou Daniel.

Daniel deu um sobressalto e logo já disse:

- Eu não tenho nada. Desculpa aí.

Um outro rapaz, que também trabalhava no mesmo prédio de Daniel - mas não no mesmo escritório; inclusive, ele tinha hábitos diferentes do de Daniel: sempre ia de ônibus, preferia quebrar a rotina às vezes, não tinha uma vida estanque - estava logo atrás dele. Foi igualmente abordado pelo moço da rua, e seguiu o mesmo "caminho" de Daniel":

- Desculpa, moço, mas eu não tenho.
- Mas não é isso. Quero saber se você tem horas.
- Como?
- Cê tem horas? Que horas são?
- Ah, são nove e quinze.
- OK. Obrigado.
- Só isso?
- É, só. Valeu.

Era só isso, pensou o rapaz abordado. E ele pensando que era outra coisa.