Quem lida com discussões políticas, acaloradas ou não, em
algum momento já deve ter se deparado com o termo whishful thinking, que
eu interpreto como algo que não é somente a utopia, mas um desejo que muito
provavelmente não vai se concretizar porque é fora de uma suposta realidade.
Por exemplo, o PSOL ganhar as eleições presidenciais de 2014 não era um
horizonte palpável, concretizável, mas a mínima, ínfima e remota possibilidade
de se tornar real move as pessoas em torno desse ideal.
E tive uma surpresa ao ver Julio Cortazar usar o termo para
fora dessa caixinha política. Eu to bem lá, lendo O Jogo da Amarelinha,
quando chego no seu capítulo 71. Um capítulo, aliás, fundamental para quem se
encontra numa lida diária pela transformação do mundo. É alquímico esse trecho
do livro, e resolvi trasladar algumas partes dele para cá para vocês perceberem
que interessante é a reflexão que ele faz. Se é ironia o que ele escreve, não
sei. Tem sarcasmo, tem alegorias, mas tem algo que me deixou instigado.
“...uma pessoa pode rir e pensar que não está falando a sério, mas sim, está falando a sério, pois o riso, por si só, já cavou mais túneis úteis do que todas as lágrimas da terra (...). Talvez haja uma saída, mas essa saída deveria ser uma entrada. Talvez haja um reino milenar, mas não é fugindo da carga de um inimigo que se conquista uma fortaleza.”
No começo do capítulo, ele tenta discutir sobre o que será
essa história de buscar um “reino milenar, um éden, um outro mundo” – e ele diz
que tudo se tem orientado para a nostalgia – retorno ao útero e “o bom
selvagem” são termos que ele cita para trazer isso à tona. Retorno ao útero,
uma das alegorias mais interessantes para se pensar a volta ao começo, ao
princípio. O útero é sempre considerado o nosso rancho acolhedor quando estamos
numa situação pesada – tanto é que se estamos com questões e conflitos que não
damos conta, nos submetemos à posição fetal para suportar isso. Quem nunca se
pegou encolhido na cama, chorando em bicas, atormentado, sofribundo? Já o bom
selvagem é o homem sem preocupações, que apenas vive e respira e come e se
alimenta. Só isso já basta – além, claro, de ter o instinto aguçado pela
sobrevivência, vai que aparece uma onça-parda na sua frente durante uma caçada?
Corra, Bom Selvagem, Corra!
Mas eu acho que a gente já passou da fase de somente viver e
seguir vivendo, não? Podemos ter desejos auspiciosos por mudanças, por
realizações, por vivenciar novos processos. Podemos? Claro, mas sem nos furtar
a desistir no primeiro tropicão. E é com certeza a parte mais difícil dessa
tomada de consciência da caminhada, dessa busca pelo reino milenar – que é, na
verdade, mas interior que exterior. Se dentro de casa tá tudo tranquilo, na rua
possivelmente também estará. Agora, se tiver ruim dentro, pode colocar
falsidade e máscara à vontade quando sair, isso vai cair.
“Pode ser que haja outro mundo dentro deste, mas não o encontraremos recortando sua silhueta no tumulto fabuloso dos dias e das vidas, não o encontraremos nem na atrofia nem na hipertrofia.”
Não vai ter outro mundo nem no oito, nem no oitenta. Me fez
lembrar o Caminho do Meio, estratégia budista de buscar a consciência dos dias
e dos tempos. Que não é na falta nem no excesso, nem na devoção ascética nem no
materialismo niilista que as portas e janelas serão enxergadas – eu disse
“serão enxergadas”, não que serão abertas; muitas delas já estão escancaradas,
mas cadê coragem para atravessar o portal? Cadê uma visão mais lúcida para
enxergar as portas abertas e evitar quebrar o nariz nas portas fechadas?
Difícil ver isso se você se encontra numa névoa mental pesada – que só se
dissipa, primeiro, se você sabe e se percebe dentro da névoa (opa... entrei
numa neblina pesada... vou ter que ir mais devagar). O tumulto da vida e dos
dias é essa névoa que embaça o momento presente. Se existe um desejo legítimo
por mudança, ele não pode ser invisibilizado por essa névoa, mas percebido, a
princípio, dentro dela. O mundo como está posto – o Samsara no Budismo, o Caos
para os anarquistas, o Status Quo para os movimentos sociais, a Roda Viva – não
contempla nossos anseios por leveza, mas não podemos ignorá-lo; é necessário
vê-lo, percebê-lo e identificar com o quê não queremos nos identificar. Esse
furor pelo dia de Santo Antônio, o “Santo Casamenteiro” – tá bom, gente, todo
mundo pode ter o anseio que for, e casar é um deles. Mas será que é realmente
necessário e saudável ir para uma fila de uma celebração na qual um bolo será distribuído
com mil anéis no seu recheio e quem for contemplado/a com o anel é quem vai,
digamos, poder casar? Que coisa mais materialista que é correr atrás de um
desejo simplesmente porque ele tem que acontecer. Ou porque nos é ditado que a
vida tem que correr obrigatoriamente por um caminho pré estabelecido – nascer,
estudar, casar, ter filhos, ter netos, morrer. E ainda nos surpreendemos quando
nossos avós morrem – mas não estava dado que isso acontecer? Então por que o
sofrer? Tá vendo como é confuso e como é, mais do que importante, é necessário
ressignificar nossas vidas? Sem crise quanto a casar e ter filhos, mas precisa
ser nesses moldes samsáricos? Precisa ser dentro daquilo que o mundo/a
sociedade impõe? Precisa seguir uma estética única? Precisa ser um momento de
ostentação para a sociedade em vez de uma celebração de união? Uma reportagem
que vi no Jornal Hoje, sobre essa distribuição do bolo de Santo Antônio, com o
fim de permitir às mulheres “arranjarem” um marido (olha o verbo: nem é se unir,
nem é conquistar, é ARRANJAR, como se o primeiro que viesse já estivesse bom
porque o que é necessário é desencalhar, e não estar em uma relação estável e
feliz) me incomodou deveras.
“Além de tudo, é preciso ser imbecil, ser poeta, é preciso ficar a ver navios para perder mais de cinco minutos com essas nostalgias perfeitamente liquidáveis a curto prazo. Cada reunião de gerentes internacionais, de homens-de-ciência, cada novo satélite artificial, hormônio ou reator atômico esmagam um pouco mais essas enganosas esperanças.”
Eu sou um poeta imbecil – ou um imbecil poeta – por desejar
um mundo (pelo menos para mim) menos caótico. Ou melhor, o caos nunca morreu e
nem nunca morrerá, mas me considero um poeta imbecil – ou um imbecil poeta –
por não me deixar afundar nesse carma. Como uma pessoa que se afoga e sabe que
não pode entrar no jogo das águas, que necessita buscar recursos para não se
deixar levar e falecer. Prefiro ser visto assim a me deixar pelas ondas, me
afogar e viver uma vida mais ou menos. Se o que existe é cármico, quero me
encontrar fora disso mesmo estando dentro. Não existe vida sem carma, a questão
é quando o carma invade a calma.
Tudo pode nos ser tirado, mas a essência permanece. E dentro
dessa essência, fica aí o recado para trabalharmos continuadamente nesse rolê
danado chamado vida. Por menos expectativas e anseios dos resultados, por mais
esperanças e vivências da caminhada.
“Pode-se matar tudo, menos a nostalgia do reino, que levamos na cor dos nossos olhos, em cada amor, em tudo aquilo que profundamente atormenta e desfaz e engana. Wishful thinking, talvez; mas essa é outra definição possível do bípede implume.”
Aí, quando eu termino o texto e ele me parece concluído, o imponderável atua e me traz Fernando Brant – que recentemente fez sua passagem –
para dar uma conclusão interessante a essa reflexão viajada da minha parte.
Poesia é meu pão
E a vida meu juiz
Meu destino eu mesmo é que fiz.
Meu coração, amar
Minha razão, brigar pelo país
A minha fé, sonhar
Minha paixão, viver solidário e contigo
É viver feliz.
Minha canção cantará
Quem souber esse caminho
Quem souber de lua e mar
Poesia espaço de criar
Quem não quer ficar sozinho
Que conjugue o verbo amar
Poesia espaço de brincar
Meu coração vencerá...