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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O preconceito está por eu não ser você

Preconceito. Wikipédia define essa palavra como "'juízo' preconcebido, manifestado geralmente na forma de uma atitude 'discriminatória' perante pessoas, lugares ou tradições considerados diferentes ou 'estranhos'. Costuma indicar desconhecimento pejorativo de alguém, ou de um grupo social, ao que lhe é diferente.'"

Geralmente, todos nós temos alguns tipos de preconceitos - ah, aquele preto; ah, aquela loira burra. Tudo o que temos encrustado na nossa sociedade acaba se revelando em atitudes não somente discriminatórias, mas também violentas.

Que o digam os agressores do André, estudante homossexual de Direito da USP, que foi agredido em Pinheiros, bairro de São Paulo (onde moram oitenta por cento dos meus amigos de Belo Horizonte que foram se aventurar pela Babilônia).

Que o digam os estereótipos comuns que vemos retratados em esquetes de humor tão propalados na grande mídia. Porque não faz mal reforçar aquilo que é natural, né?

Que o digam nós, que em atitudes das menos suspeitas conseguimos formular as mais diversas frases, tendo opiniões formadas sobre tudo. É bandido? Tem que morrer! Um a menos! É "de menor"? Manda prender junto com todo mundo!

O principal fundamento do nosso preconceito é o desconhecimento. A ignorância não no sentido da burrice, mas da não consciência de algo. Eu discrimino, tu me apoias, ele se ferra, nós zombamos, vós acusais, eles se defendem. De certa forma, é confortável.

E como é difícil sair da zona de conforto.

Nós só tiramos as pantufas quando vamos à rua. Mas para que sair de casa, se existe o tal do delivery?

Somente podemos fazer um efetivo exercício de compreensão do nosso preconceito quando damos conta dele. Quando em vez de dizer "não tenho preconceito, MAS...", admitimos e falamos "eu tenho preconceito com isso, isso e aquilo". Já é um passo. Você pode até continuar com esse seu jeito discriminatório, mas ele não será mais velado e muito menos desconhecido até por você mesmo.

Pare de se enganar, antes de tudo, e comece a se ver por dentro. Ao que apontar um dedo para outra pessoa, há três dedos apontando de volta. Porque é esse um dos problemas do Brasil Cordial: acha que está tudo OK, que não tem nada de errado, e que certos tipos de atitudes não querem dizer um comportamento preconceituoso.


quarta-feira, 28 de novembro de 2012

"Você é mais machista do que consegue enxergar."

Antes de mais nada, essa frase foi dita para mim. Sim, por mais surpreendente que isso possa parecer, não me surpreende. Do ponto de vista da minha pessoa, quem me disse isso estava certo do que estava falando.

Esse alerta me foi feito numa situação pública. E chega em uma boa hora, para abrir uma discussão sobre o que a gente faz e o que a gente fala. Sem querer entrar em méritos, mas averiguando as ações das pessoas.

Quando ouvi essa frase, meu passado de atitudes machistas (e machonas) voltou como que num instante. Sem querer, eu tinha feito uma regressão em relação ao discurso que estou dizendo e das atitudes falaciosas que venho cometendo - muitas delas são imperceptíveis para mim. Mas justamente por eu não conseguir percebê-las, necessito do toque e da orientação do outro para balizar não os pensamentos (que, de certa forma, estão andando menos no caos), mas as atitudes que refletem certas inconsciências.

Todos nós vivemos num contexto social de pleno machismo, sexismo e tal. E não seria incomum nós ouvirmos frases como essa que eu ouvi e que dá nome ao título deste post. Quando não enxergamos as atitudes machistas que há em nós, acabamos por perpetuar o que já existe na sociedade - sim, mesmo que tenhamos um discurso avesso e de repulsa a todo esse comportamento retrógrado. Mas temos, às vezes, esse inconsciente retrógrado.

Tal como o pai ou a mãe que adverte o filho para não colocar o dedo na tomada, eu preciso de pessoas cuja consciência está mais presente nessas questões para me advertir do que faço, do que falo, do que penso. Pelo menos eu não tenho o desejo (consciente) de perpetuar essas velhas práticas que tanto me dão ojeriza. Mas acabamos reproduzindo, sem querer mesmo. Daí a importância das outras pessoas em sempre nos darem o toque, nos advertirem desses atos, nos cutucarem. Se não, as velhas práticas permanecem, e a gente sempre faz mais do mesmo.

Daí a importância de não se calar ao perceber uma atitude que te incomoda. Não advertir o outro causa um efeito negativo duplo: na pessoa que manifestou essa atitude, que vai continuar perpetuando esses atos de incoerência; e na outra pessoa que viu isso como negativo, porque vai acabar acumulando uma carga pesada por não ter dito na hora, ficando apenas se remoendo com o dito do outro.

É tarefa minha repensar meus atos, minhas atitudes e minhas formas de lidar com as coisas para que isso se alinhe com o que tenho defendido politicamente. Mas não custa nada um cutucãozinho dos amigos para me advertir que, na maioria das vezes sem perceber, eu estou fazendo isso errado.

Em tempo: aproveito a oportunidade para mostrar uma reportagem realizada sobre esse tema, em junho, depois da Marcha das Vadias. Foi uma produção para o Conexão Periférica, acho que vale a pena postá-lo aqui. E, de pronto, peço desculpas se em alguma atitude fui incoerente com meu discurso. Me cutuque sem medo. E se deixe cutucar, também - seja por mim, seja pelos outros.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Na Savassi ninguém dá dura

Era sexta-feira, 9 de novembro. Costumeiramente, eu vou ao Edifício Arcangelo Maletta, na Augusto de Lima com Bahia, tomar um café ou uma cerveja. Nada demais, só questão de frequência, mesmo. Mas, por uma ironia do destino - a chuva, que desanimara uma pá de gente de sair de casa - eu também não saí. Fiquei em casa, descansando, me preparando para a viagem do dia seguinte para São Paulo.

Durante o fim de semana, eu vejo um burburinho no Facebook sobre uma operação truculenta e pesada da Polícia Militar num espaço aí. Só que eu não tinha tido a oportunidade de ver o que tinha acontecido, e só hoje li sobre o quê se tratava, neste link:

Uma operação coordenada pela Polícia Militar (PM), na noite de sexta-feira (9), no Edifício Maletta, no Centro de Belo Horizonte, está sendo alvo de críticas nas redes sociais. Parte dos usuários relata ter presenciado cenas de abuso e truculência durante a ação.

Cerca de 50 militares teriam entrado no prédio por volta de 22:30 e bloqueando o único acesso pela avenida Augusto de Lima. Centenas de pessoas ocupavam os mais de 10 bares e restaurantes que ainda estavam abertos no local. Segundo os relatos feitos no Facebook, todos que saíram do edifício, a partir de então, foram revistados.

Vídeos disponibilizados no YouTube neste sábado mostram os policiais na entrada do prédio logo no início da operação. Eles usaram cães farejadores para buscar por drogas no local e concentraram os trabalhos no segundo andar do Maletta.




A ação teria sido organizada após denúncias feitas por moradores incomodados com um suposto esquema de tráfico no edifício. Diante da falta de informações sobre a operação e discordando da agressividade nas abordagens, frequentadores dos bares e restaurantes começaram a gravar a movimentação com aparelhos celulares.

Neste momento, alguns militares teriam se irritado e mandaram que todos parassem de filmar. No Facebook, pessoas que estavam no local narram que, a partir desse momento, aconteceu uma sequência de ações abusivas. Aqueles frequentadores que se negaram a desligar os celulares, tiveram os aparelhos apreendidos. Outros chegaram a ser detidos.


Tudo bem se a Polícia Militar quer mostrar serviço, está na sua obrigação. Ela exagera na maioria das vezes na abordagem - o dia que eu estava em Lagoa Santa (região metropolitana) esperando de noite um ônibus para ir embora, e o policial me abordou de dentro da viatura apontando a pistola para o meu rosto, diz um pouco disso.

Eu sou um frequentador do Maletta, dos cafés e dos bares. Há sempre companhias deveras agradáveis naquele espaço, sebos muito bons, espaços alternativos de convivência. Passei - e passo - várias horas da minha vida ali. Conheço, inclusive, pessoas que viveram o passado do Maletta, à época que ele era notícia de jornal quase todo fim de semana (isso, na década de 1970). E eu sou uma testemunha de não ter visualizado nada de grave ocorrendo naquele espaço. Até porque, por causa de um regulamento interno, você só pode ter acesso aos bares da varanda antes de 23h, depois desse horário o segurança passa a corrente, e se você está dentro não pode sair, e vice versa.

A controvérsia dessa situação está no fato de ela não acontecer em diversos outros espaços que, assim como o Maletta, são tidos como "ponto de consumo de entorpecentes". E a cerveja nossa do fim de semana, ela é o quê?

Indigna-me não a ação da PM, mas ela se restringir a somente alguns espaços. Não estou muito certo se na Savassi ou no Seis Pistas (ambos na Zona Sul) o povo somente consome vinho barato, e não outros baratos. Se a alegação para a ação é uma denúncia dos moradores, enfrentamos aí outro problema: o caráter reativo e não preventivo-ostensivo da Polícia. Traduzindo em miúdos, só reage se alguém chamar. Isso fica claro naquele caso do jornalista que foi espancado por skinheads na... Onde mesmo? Savassi! Mas com um grande porém: mesmo com o corpo sangrando, Juliano Cardoso de Azevedo e seu amigo (que também apanhou severamente) não conseguiram sequer fazer o BO - que, na linguagem popular, recebe uma conotação que eu não posso dizer aqui sob pena de calúnia.

O caráter apenas reativo da Polícia é preocupante, isso não é garantia de segurança a mim como cidadão. Mas não é isso que vai me fazer ficar preso dentro de casa.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Sobre Carolina e o resto do mundo

Ei, novembro, que bom que você chegou! Sempre trazendo os Filhos do Carnaval e algumas coisas mais estranhas que o ET de Varginha ou o Chupacabra.

Digo isso porque é de se estranhar que algumas coisas deem tão certo na nossa Pátria, e outras fiquem relegadas ao esquecimento. Hoje, no nosso querido Facebook (ele, como sempre, me nutrindo de utilidades públicas - ou não), referendou aquilo que eu tinha ouvido pela manhã na Band News FM - ah, sim, agora pude acreditar porque apareceu no Facebook, não é fake:

A Lei Carolina Dieckmann agora é realidade.

O plenário do Senado aprovou ontem projeto de lei que tipifica crimes cibernéticos. A proposta foi batizada de “Lei Carolina Dieckmann”. A atriz teve fotos de seu arquivo pessoal roubadas por hackers e divulgadas na internet. Atualmente não há legislação específica e os crimes nessa área são tratados como estelionato. O projeto ainda tem que ser votado pela Câmara dos Deputados. 
Pela proposta, a invasão de “dispositivo informático”, conectado ou não à internet, mediante violação indevida de mecanismo de segurança, para obter, adulterar ou destruir dados e informações, instalar vulnerabilidades ou obter vantagens indevidas será punida com prisão de três meses a um ano, além de multa.

O problema não é a lei em si, talvez uma tentativa de se controlar e regular minimamente um espaço tão difuso e tão distrópico seja válido.

Muito menos tentar cercear aquilo que, em sua origem, já nasceu anárquico, sem controle.

O problema reside no estopim que foi o motivo para a implementação dessa lei, a moça que dá nome ao regulamento.

Carolina é uma figura pública. Teve sua bunda exposta na internet contra a sua vontade. Mas, diferente de um tanto de garota que também teve a bunda exposta na rede também a contragosto, ela tem cacife suficiente para virar nome de lei. Para estimular uma celeridade estranha aos trâmites do Legislativo Federal - o vazamento das fotos foi em maio; pouco menos de cinco meses depois e o Senado já diz sim à lei.

Se todos os casos de violação de direitos básicos e fundamentais tivessem uma vítima como a Carolina, acho que as coisas funcionariam melhor. As luzes da imprensa estariam jogadas para a cobertura desse caso, o povo iria pedir mais pressa - afinal, Carolina é "ídala"e merece ser tratada com carinho e amor. Assim como os gatinhos que a gente compartilha no (sempre ele) Facebook.

Só a título de comparação esdrúxula, a Lei Maria da Penha foi promulgada em 2006; a moça que dá nome à lei sofreu de violência física e psicológica desde 1983 - pouco tempo, uns 23 anos de delay, apenas.

E, claro, não tem como não lembrar dessa tirinha do André Dahmer.



quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A história de mais um Brasileiro

Esta é apenas mais uma história de mais uma pessoa que talvez tenha nascido no nosso Brasil. Se é ficção ou realidade, será você quem vai decidir.

Quando nasceu Maicon Jackson Brasileiro Pereira, terceiro filho Brasileiro Pereira, houve uma festa especial com direito a um grande churrasco no barraco da família na Vila Dom Bosco. Não é que a vinda dos outros dois irmãos não tenha sido especial, mas este era diferente. A felicidade dos pais começou na sala de parto quando o médico anunciou a chegada do filho ao mundo e, ao dar uma palmadinha no bumbum da criança, olhou de relance por duas vezes para o pai, que acompanhava o nascimento.

Após darem o banho e limparem a placenta, colocaram a criança no colo da mãe que, ainda muito inchada, chorou de alegria por receber aquele milagre em seus braços. Não importa se era o terceiro, o milagre da vida era emocionante. Ao saírem da sala, as enfermeiras que limparam a mãe indagaram a paternidade daquele estranho na sala e, após a confirmação, deixaram o pai com a mãe e a criança para curtir aquele momento único.

Os pais entraram em consenso de que aquele ali deveria ter um nome diferente, de artista americano, e resolveram homenagear aquele grande cantor pop para que fosse selado na criança o destino do sucesso. A escolha do nome não obedeceu completamente à regra de seus fraternos José Mariano e João Mário, mantiveram o nome composto mas inverteu as iniciais dos pais: J e M. Dias depois, saídos do hospital, os pais buscaram os dois outros filhos na casa da avó e voltaram, felicíssimos, para o lar. E dá-lhe churrasco! Quase uma semana de comemorações para o mais novo membro da família Brasileiro Pereira, com direito a colo de todas as mulheres, elogios no diminutivo e muita inveja dos vizinhos que sempre saíam cochichando maledicências pelos cantos.

A condição social da família não era das melhores. O pai era frentista e a mãe ajudante de cozinha em uma creche. Com o nascimento de Maicon Jackson, o pai passou a trabalhar em dois turnos e a mãe acabou deixando o emprego ao fim da licença maternidade para cuidar dos filhos. Tinham uma vida difícil e sacrificada, mas contava com a ajuda da sogra que olhava os outros dois mais velhos e ajudava a comprar algumas coisas em casa. A mãe queria garantir o futuro de sua jóia e de seus irmãos, e tentava se doar o máximo para que eles não precisassem passar dificuldades. “Amor de mãe é incondicional”, dizia sempre.

E com muito amor, e sem esquecer os outros dois, a mãe reconheceu e foi lapidando sua joia para um futuro de sucesso. Maicon andou e falou antes que os irmãos. Na creche, e posteriormente na escola, nunca precisou chamar a atenção das tias e das professoras: toda tia queria pegar no colo, todo professor insistia para que ele estudasse um pouco mais, todo coleguinha queria fazer dupla com ele. Diferentemente de Maicon, seus irmãos se destacavam com as professoras e coleguinhas fazendo muita algazarra. A mãe se alternava entre ouvir os elogios a Maicon e reclamações dos outros dois - muitos não conseguiam acreditar que pudessem ser irmãos. Durante o sétimo ano do ensino fundamental, quando alcançou seus irmãos repetentes, se envolveu em uma briga.

Tudo começou quando um colega de classe caçoou de suas roupas surradas de terceira mão, herdadas dos irmãos.

- Ô, mendigo! O bolso da tua mãe também ta furado?

- Pelo menos eu não sou preto! – respondeu e saíram no tapa.

Um dia, no posto de gasolina, o pai foi chamado de corno e isso resultou em uma briga que quase lhe custou o emprego. Para se defender, dizia ter um tio-avô que era branquinho dos olhos azuis. Nunca duvidou da fidelidade de sua esposa e pensava na sorte de ter um filho branco que gerava muita inveja nos vizinhos. O cabelo do garoto, idêntico ao seu, não o deixava duvidar: o garoto era seu filho. Sangue do seu sangue, apesar da diferença na cor. Incomodava-se muito com o comportamento dos outros, com a inveja alheia. Os comentários sobre a cor do garoto o fez pensar em racismo, mas descobriu serem somente as raposas desdenhando das uvas. Afinal, todo mundo queria um filho tão branquinho. Repetiu para si, então, o que escutara de um candidato a vereador que apareceu na vila em época de eleição: “No Brasil não existe racismo, isso aqui é uma Democracia Racial!”.

O “destino” foi muito mais generoso com MJ do que com os JM. Conseguiu terminar o ensino médio e entrou como auxiliar administrativo em uma empresa. Com a ajuda do seu chefe, conseguiu fazer um curso técnico e subiu de cargo. Seu irmão mais velho seguiu o caminho do pai e virou frentista, o outro escolheu o caminho das drogas e morreu aos 21. A mãe, profeta, soube desde sempre que ele estava destinado ao sucesso. Como sempre dizia: “A cor não nega”.


***Esse texto é uma colaboração do psicólogo e amigo Douglas Lisboa. Cópia livre a quem quiser replicar - só citar a fonte. Sem ressentimentos.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Joaquim Barbosa, o transparente negro

Vi um post outro dia no Facebook que me incomodou deveras:


Sei que estamos todos colocando o Joaquim num pedestal e o louvando como mártir. A principal discussão sobre esse post é o mérito às cotas. Que o fato de o Joaquim ter chegado a um alto cargo no STF sem a necessidade de bonificações por ser negro parece desconstruir o discurso pró-cotas. Espere um minuto.

Eu vou argumentar com meus achismos, como todo mundo sempre gosta de fazer – são achismos que partem da percepção que tenho diante desse problema, de desmerecer um processo inclusivo porque o outro (excepcionalmente) não se utilizou do processo. 

A primeira coisa é dizer que o Joaquim não é negro. Uma falácia que se desmente ao primeiro olhar e que desconsidera todo um processo histórico de perdas, deméritos e depreciações. Basta olhar para o Joaquim e ter certeza de que ele é, sim, negro – a cor da pele dele é escura, é café, é chocolate, é morena; utilize-se do eufemismo que você quiser, mas ele é preto. Pode parecer que o sentido de “transparente” tenha a ver com como ele lida com o julgamento do Mensalão –nunca antes da história desse país um julgamento no STF teve tanta mídia e discussão. Mas eu interpreto esse “transparente” como uma forma de retirar Barbosa da sua condição de negro. E negar a negritude é o que fazemos dia após dia – “esse moreno aí”, “essa menina escura”, “esse rapaz de cor”. 

Segunda coisa: o fato de haver um Joaquim Barbosa como Ministro do STF não deve servir de pauta para uma discussão contra cotas. Barbosa é exceção num universo de pessoas de cor branca – essa expressão “de cor” também se aplica aos brancos, porque, convenhamos, branco também é cor e aplicá-la somente aos negros fica uma coisa estranha. Se existe toda uma redoma histórica na vida dele, dizendo que conseguiu vencer na vida oriundo de uma família pobre e etc., não podemos simplesmente virar as costas à discussão das cotas por causa de uma exceção. Sim, Joaquim Barbosa, esse negro que está sendo venerado por nós todos, é uma exceção. Em um país onde mais da metade da população se considera negra ou parda, ter apenas um ministro negro é menos do que podemos atingir e alcançar. Repare na composição atual do Tribunal. Faça as contas: se são 11 ministros, sendo um negro, a porcentagem da representatividade negra no STF é bem inferior àquela da população – menos de 10 por cento. Repito: o fato de Barbosa não ter precisado de cotas não significa que uma pessoa também negra, também de origem humilde, também inteligentíssima, não necessite de cotas. Estamos falando de garantir oportunidades a quem não as teve, equiparando-as e reparando essa parte da sociedade que por longos invernos não pode alcançar lugares menos indignos. 

 Mas aí você me pergunta: “e no seu caso, Bruno?”. Sim, sou negro, tenho curso superior e não dependi de cotas. Mas o fato de eu não ter precisado de cotas, de ter tido uma família que me apoiou para poder ter uma educação decente, não tira o direito de outra pessoa que não teve as mesmas oportunidades que eu de ter acesso à educação por meio de um programa de facilitação desse acesso. Eu não precisei de cotas porque o Colégio Militar de Belo Horizonte, escola pública federal, me deu uma excelente base para que eu pudesse passar de primeira na Universidade Federal de Minas Gerais. Mas quem estuda em outras escolas do sistema público (estadual, principalmente, que é onde está o Ensino Médio) tem iguais condições de competir comigo? Querer retirar a oportunidade de um grupo social por causa de uma exceção é, no mínimo, cruel. Cotas não são critérios de promoção à desigualdade, mas uma forma de equiparar aqueles que não têm condições de competir em pé de igualdade com o status quo. 

 Se Joaquim Barbosa chegou onde ele está, é claro que foi por mérito próprio. E por portas que lhe foram abertas ao longo do caminho. Se eu cheguei onde estou, também foi por eu ter corrido atrás. Quantos “neguinhos” ficam aí para trás porque justamente essa porta que nós atravessamos encontra-se fechada? Em vez de apontar o dedo para uma questão de exceção, vamos ajudar para que essa exceção vire regra?