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terça-feira, 26 de agosto de 2014

Quando a poesia se torna sinestésica

Sinestesia: é a relação de planos sensoriais diferentes: Por exemplo, o gosto com o cheiro, ou a visão com o tato. O termo é usado para descrever uma figura de linguagem e uma série de fenômenos provocados por uma condição neurológica.

Existem certas coisas no universo que não cabem numa explicação simples - seja racional ou espiritual. E nisso se inclui as diversas sensações que tenho ao ouvir o Clube da Esquina - volume 1. É, o disco com os dois guris na capa e que se transformou numa referência no mundo da música. Arte de pessoas de Minas.



Não vou me debruçar em falar das especificidades técnicas do disco, isso todo crítico já faz. O que quero dizer é de como esse disco aparece, desaparece e reaparece na minha playlist de maneiras tão espontâneas que sequer me dou conta se estou com ele ou não no celular, no MP4, no notebook ou em outra plataforma.

Criador de uma estética que até hoje é alvo de imitação de muitos artistas, até hoje não vi o Clube da Esquina ser atingido em seu nirvana máximo. Há cantores, cantoras, grupos e afins que chegam muito próximo - assim como aquele matemático maluco de um filme do Darren Aronofsky, que insiste em descobrir o último algarismo do numeral Pi. Inatingível, mas por que isso acontece?

Vou contar a experiência que tive hoje, muito simbólica e única - e não serve como explicação única para esse sentimento.

Saí do meu trabalho um tanto atrasado para outro compromisso. Atravessei a avenida em busca de uma música para poder aliviar o cansaço do dia - e, procurando por álbuns no celular, me vem o Clube da Esquina. "Tudo o que você podia ser" começa a tocar e aquela vontade de gritar surge na garganta. A música te chama a uma luta, consigo mesmo, de mudança de paradigmas - ou não. É uma canção que impulsiona, que te joga para frente. Assim como "San Vicente" (mais conhecida popularmente como Coração Americano), que é uma balada inabalável (com o perdão do trocadilho que o Skank usa em uma de suas músicas). Claro, "Nada será como antes" amanhã, a famosa música daqueles que desejam mudanças plenas, nada adiáveis - no máximo até o dia seguinte. Outra música impactante.

O engraçado é que, quando chegam as músicas mais lentas (Dos Cruces ou Cais, por exemplo), eu passo para a frente, buscando alguma coisa mais animada no random. São lindas, excepcionais, mas minha vibe hoje era de coisas mais animadinhas. Ao entrar na estação do metrô, tocava "Trem de Doido", uma guitarra low-fi sujona, estridente e belíssima. Coincidiu de eu estar ouvindo essa música quando o metrô chegou na plataforma. Achei isso de um simbolismo tão extremo e singelo que resolvi registrar isso aqui.

E por causa desse episódio, me detive mais em ir observando as outras músicas do disco e fui sentindo certa energia que não conseguia explicar senão pela definição de sinestesia que coloquei acima, neste post. Milton e Lô conseguiram (claro, junto com toda a patota do Santa Tereza) elaborar um sentimento que se configura pela mistura de sensações - que acaba sendo até meio surrealístico não no sentido da inexistência, mas no do Realismo Fantástico, do qual Murilo Rubião foi um deveras excelente herdeiro. Versos como "o meu pensamento tem a cor do seu vestido" são provas de que só é possível concretizar tais imagens se e somente se entrarmos em sintonia com o surreal, com um deslocamento do real palpável para um real onírico. "Um girassol da cor do seu cabelo" me parece muito isso - e me faz lembrar "A casa do girassol vermelho", que é justamente do Murilo Rubião.

Depois desse insight noturno, consigo enxergar - de maneira mais sinestésica e gostosa e menos técnica e crítica - essa obra do cancioneiro nacional. Não estou aqui para ser técnico, estou aqui meramente deixando meu coração bater sem medo.

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