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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Suscitando desamizades

Desamigar-se de alguém significa, pelo menos para mim, não ter mais uma relação de amizade e/ou companheirismo com alguém. É distanciar-se a ponto de tornar aquilo que era um sol aconchegante numa mera estrela situada a mil (ou milhões) de anos-luz.

E política é uma coisa que tem me feito ganhar desamigos.



Entendo que política, no senso comum, está no rol daquelas coisas que não se discute, como religião e futebol. E aceitamos essa determinação cultural numa boa, sem um questionamento mais válido, sem perguntar "de onde que veio isso?". A resposta pode estar num certo conformismo de não querer ser contrariado, de continuar sua vida de maneira confortável na sua apatia político-intelectual.

Não, isso não é necessariamente ruim. Enquanto brasileiros, nós mesmos sustentamos isso, acreditando que política, religião e futebol não podem ser discutidos saudavelmente numa roda de conversa. Porque as três coisas são alvo de passionalidades irracionais, que beiram às catarses agressivas e a desentendimentos que podem se tornar grosserias.

Bom, eu não tenho hábito de discutir a fé dos outros - no sentido estritamente religioso; eu tenho dificuldades em aceitar que existem pessoas que se submetem a religiões de matriz cristã - Catolicismo e Protestantismo, basicamente - a ponto de não enxergar outros pontos da curva. Sim, ainda me mantenho cristão, mas crítico; talvez haja um lócus no qual eu me encaixe quanto a isso, e talvez não, eu seja meramente mais um outsider da religião. Tenho dificuldades grandes em discutir certos temas com quem acredita que tudo - da morte à vida - só tem uma única explicação.

Do mesmo modo, eu não vou querer converter um torcedor atleticano em fiel seguidor do Cruzeiro Esporte Clube. Ou tornar um flamenguista botafoguense. Times são tanto escolhas quanto condições das nossas vidas - a priori, não se escolhe torcer por um time (eu disse A PRIORI), mas essa escolha pode se dar racionalmente depois, "virando a casaca" como se diz no popular. Já vi cruzeirense virar atleticano e atleticano virar cruzeirense, e isso faz parte da dinâmica de reconhecimento do que cada um curte, gosta, vibra.

Agora, quando o assunto é política, eu me encontro numa verdadeira encruzilhada. Por muito pouco, muito pouco mesmo - opiniões de quem não compartilha do mesmo espectro ideológico do meu -, eu fiz questão de agredir um colega meu de Colégio pelo simples fato (simples nem tanto, mas...) de não compactuar da minha opinião. Na verdade, não era o fato de ele não compactuar que mais me irritou, mas de querer "falar mais alto", ditar a sua opinião como a única alternativa de interpretação possível da realidade. Por outro quinhão menor, apontei o dedo na cara daqueles que eu considerei reacionários e coxinhas. Agredi verbalmente aqueles que não demonstravam a mínima abertura para o que eu estava dizendo. Moral da história: fiz desamizades.

E continuo fazendo essas desamizades por entender que não podemos ser Politics Free em um ano de tanta comoção eleitoral como 2014 - essa comoção já vinha desde 2013, naquelas inexplicáveis catarses de 50, 100, 800 mil pessoas nas ruas nas Jornadas de Junho. Diga-se de passagem, a intolerância e a indigestão aos coxinhas já surgira daquela época, quando fui elaborando a minha interpretação dos fatos à medida que eles iam acontecendo. Eu não tive condições de me distanciar do fato - coisa de Historicismo Analítico Puro - para poder avaliá-lo. Era ali e naquele momento. Acusei de coxinha quem ia de branco; rechaçava tentativas da galera fascistoide que queria um protesto sem bandeiras; questionava o povo (de) branco que pedia paz e uma manifestação "sem vandalismo" a despeito da barbarização que o Estado de Minas Gerais fazia por meio da sua Polícia Militar.

Tudo ao mesmo tempo e agora.

E não me aguento com o fato de ter que conviver neutro, sem poder externalizar as minhas crenças. Sem poder opinar e ouvir opiniões alheias. Talvez nem sejam as opiniões diversas da minha que me incomodam, mas uma postura arrogante de senhorio da verdade - que eu, inclusive, acabo encabeçando. Já tive diálogos deveras ricos com quem, mesmo em posição completamente contrária à minha, se sentia com tranquilidade para debater. Agora, tem outros que, na boa, dá vontade de bater ou exterminar. Sem meias palavras, galera, eu não estou aqui hoje querendo "ponderar".

Só que aí eu caio em um risco duplo: de me isolar e de anular o outro, de quem necessito para ser... eu. Só posso me reconhecer naquilo que o outro pode não ser. Pelo o que ele é, reconheço o que não sou - e é justamente isso o que tem que me balizar na hora de eu me encontrar enquanto discursante de um ponto de vista. Sem um outro, não tem eu - ah, bruta flor da alteridade...

Respeitar a alteridade, entretanto, não significa aceitar tudo do outro "de bom grado". Eu já fui um garoto submisso na infância, na adolescência e no início da juventude - e, por conta da trajetória que fui traçando na minha vida, hoje me dou conta que não preciso mais ficar neutro e inerte por conta de um acontecimento ou de uma discussão.

Mas como não ser neutro e inerte sem ser grosso e arrogante? Porque - podem perceber pelo tom da minha escrita - eu me encontro neste momento como uma pessoa irritadiça, arrogante e presunçosa. Sim, presunçosa, também. Que presume que o que o outro me traz só é bom se for bom para mim. Estou publicamente assumindo isso e ligando o foda-se se você vai achar isso bacana, simpático, desinteressante ou equivocado.

E peço sinceras desculpas àqueles que, por um motivo ou outro, não se sentem mais à vontade ao meu lado por causa desse meu tipo de postura. Peço a vocês um pouco de paciência, eu vou azeitando as engrenagens aos poucos. Como eu disse, já fui muito submisso em tempos de outrora - agora, o prato da balança está pendendo para o outro lado. Eu busco o equilíbrio, mas ele só vem se eu reconhecer que há em mim um desequilíbrio.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Quando a poesia se torna sinestésica

Sinestesia: é a relação de planos sensoriais diferentes: Por exemplo, o gosto com o cheiro, ou a visão com o tato. O termo é usado para descrever uma figura de linguagem e uma série de fenômenos provocados por uma condição neurológica.

Existem certas coisas no universo que não cabem numa explicação simples - seja racional ou espiritual. E nisso se inclui as diversas sensações que tenho ao ouvir o Clube da Esquina - volume 1. É, o disco com os dois guris na capa e que se transformou numa referência no mundo da música. Arte de pessoas de Minas.



Não vou me debruçar em falar das especificidades técnicas do disco, isso todo crítico já faz. O que quero dizer é de como esse disco aparece, desaparece e reaparece na minha playlist de maneiras tão espontâneas que sequer me dou conta se estou com ele ou não no celular, no MP4, no notebook ou em outra plataforma.

Criador de uma estética que até hoje é alvo de imitação de muitos artistas, até hoje não vi o Clube da Esquina ser atingido em seu nirvana máximo. Há cantores, cantoras, grupos e afins que chegam muito próximo - assim como aquele matemático maluco de um filme do Darren Aronofsky, que insiste em descobrir o último algarismo do numeral Pi. Inatingível, mas por que isso acontece?

Vou contar a experiência que tive hoje, muito simbólica e única - e não serve como explicação única para esse sentimento.

Saí do meu trabalho um tanto atrasado para outro compromisso. Atravessei a avenida em busca de uma música para poder aliviar o cansaço do dia - e, procurando por álbuns no celular, me vem o Clube da Esquina. "Tudo o que você podia ser" começa a tocar e aquela vontade de gritar surge na garganta. A música te chama a uma luta, consigo mesmo, de mudança de paradigmas - ou não. É uma canção que impulsiona, que te joga para frente. Assim como "San Vicente" (mais conhecida popularmente como Coração Americano), que é uma balada inabalável (com o perdão do trocadilho que o Skank usa em uma de suas músicas). Claro, "Nada será como antes" amanhã, a famosa música daqueles que desejam mudanças plenas, nada adiáveis - no máximo até o dia seguinte. Outra música impactante.

O engraçado é que, quando chegam as músicas mais lentas (Dos Cruces ou Cais, por exemplo), eu passo para a frente, buscando alguma coisa mais animada no random. São lindas, excepcionais, mas minha vibe hoje era de coisas mais animadinhas. Ao entrar na estação do metrô, tocava "Trem de Doido", uma guitarra low-fi sujona, estridente e belíssima. Coincidiu de eu estar ouvindo essa música quando o metrô chegou na plataforma. Achei isso de um simbolismo tão extremo e singelo que resolvi registrar isso aqui.

E por causa desse episódio, me detive mais em ir observando as outras músicas do disco e fui sentindo certa energia que não conseguia explicar senão pela definição de sinestesia que coloquei acima, neste post. Milton e Lô conseguiram (claro, junto com toda a patota do Santa Tereza) elaborar um sentimento que se configura pela mistura de sensações - que acaba sendo até meio surrealístico não no sentido da inexistência, mas no do Realismo Fantástico, do qual Murilo Rubião foi um deveras excelente herdeiro. Versos como "o meu pensamento tem a cor do seu vestido" são provas de que só é possível concretizar tais imagens se e somente se entrarmos em sintonia com o surreal, com um deslocamento do real palpável para um real onírico. "Um girassol da cor do seu cabelo" me parece muito isso - e me faz lembrar "A casa do girassol vermelho", que é justamente do Murilo Rubião.

Depois desse insight noturno, consigo enxergar - de maneira mais sinestésica e gostosa e menos técnica e crítica - essa obra do cancioneiro nacional. Não estou aqui para ser técnico, estou aqui meramente deixando meu coração bater sem medo.