Páginas

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Não é desleixo, é desapego

Pelo contrário: desapego é uma das mais transcendentais e importantes formas de demonstrar afeto.

Bom, deixa eu começar esse texto direito...

---

No ano passado, fui acometido - assim como boa parte desta pátria brasileira - de uma verve deveras nervosa no que tange à questão das eleições e da política. Tive uma discussão sem fundamentos (do ponto de vista conceitual, já que foi uma conversa vazia típica do embate Petralha - eu - versus Coxinha - ele) com um colega meu de Colégio. Hoje, ele é uma pessoa bem sucedida - fez Unicamp, é de Exatas, vai viajar (eu acho) pelo Ciência Sem Fronteiras e, como bom Classe Média, odeia as benesses do atual governo - mesmo se beneficiando de um dos seus programas, justo o CSF, que o fará ir à Europa onde, segundo ele, a situação está melhor que aqui. Prefiro não comentar, eu ainda não consegui viajar para fora do Brasil para ter um julgamento tão assertivo assim.

Esse meu colega me excluiu do seu círculo de proximidades. Ganhei um ponto de salubridade, confesso, porque ele não é do tipo de pessoa que deseja um diálogo saudável, mas leva tudo para a questão da passionalidade. Eu também fui passional em alguns embates, mas tendendo a me abrir ao diálogo. Eu disse tendendo.

Após as eleições, passada a comoção, tive um outro momento de discussão com outro, digamos, "Coxinha". Era eu petralhando do lado de cá e ele coxinhando do lado dele. Tive algumas discussões pesadas no grupo de amigos do qual participava no Whatsapp. Preferi, quando entrou o ano, não mais tocar em assuntos polêmicos - me lembrei do motivo da discussão: quando o Viaduto Batalha dos Guararapes caiu ano passado, durante a Copa, essa pessoa disse que o "prefeito" Márcio Lacerda não tinha nenhuma responsabilidade sobre o que acontecera, e eu já acho o contrário - não é para ser "babá do cidadão", como já sugeriu o dileto Márcio, mas uma prefeitura não é uma empresa que você simplesmente delega as responsabilidades e foda-se o que acontecer. Nisso, o Exército traz um senso mais interessante de justiça, porque o que acontece dentro de um quartel do qual sou o comandante respinga em mim como comandante. Ou seja: mesmo não tendo responsabilidade técnica, Lacerda tem responsabilidade política diante a queda do viaduto. E essa pessoa não concordava com isso, e essa discordância para mim é um perfeito absurdo de quem não tem nenhuma sensibilidade sobre o que é gerir uma cidade. Gerir uma empresa, creio eu, ele (essa pessoa com quem discutir) pode saber; gerenciar uma cidade não deve, não pode seguir a mesma lógica.

Mas desde essa discussão a nossa relação anda estremecida. A gota d'água foi quando discutimos sobre o caso do viaduto que fica em cima da Estação Pampulha e que tinha apresentado um desnível. No whats, uma amiga tinha comentado que o desnível era de 10 cm, e ele comentou que foi de "apenas" 2,5 cm. Como se isso fosse a coisa mais irrelevante do mundo. Eu, que estava num shabbat offline para evitar conflitos, não me contive - quero dizer, agi racionalmente - e comentei de maneira irônica o comentário dele, com todos os elementos típicos de uma argumentação "provoque um coxinha" - um deles, dizer "ah, meu caro, faltou então você culpar a Dilma por isso". Puto da vida, ele me retrucou e eu, respeitosamente, mandei-o à merda. Ele, respeitosamente, me mandou de volta para o túmulo do offline. Respeitosamente obedeci, e saí do grupo.

Vinte e três dias se passam hoje depois desse episódio. E meus outros amigos do grupo ainda não restabeleceram o contato comigo.

E não vou entrar em contato tão cedo. Não por vingança nem nada, mas pelo desapego.

Eu tenho uma amizade com eles de 15 anos. São pessoas que mais que amigos são companheiros, pessoas que cresceram junto comigo (quero dizer, alguns só cresceram intelectualmente; fisicamente, permaneceram na linha dos 1,60 m... Tô brincando.) e que eu jamais desejaria magoar. Só que esses amigos também são amigos dessa pessoa com quem discuti. E, em respeito e reverência a eles, eu preferi sair do grupo do que sustentar uma situação que poderia desagradar, gerar outros tipos de desgastes desnecessários que, eu sei, teria condições de provocar.

Sabe aquele ditado de "os incomodados que se retirem"? Me incomodava a presença dessa pessoa no grupo, só que o resto do grupo não se incomodava. Me retirei por afeto aos meus amigos, às pessoas que admiro, às amizades que atravessam esse tempo todo e outros momentos difíceis. Me afastar foi uma prova de, digamos, alteridade. Quem sabe até mesmo compaixão - de perceber que aquela pessoa com quem tive os atritos não vai ver a situação sob o meu ponto de vista porque ela não é eu (grazadeus...) e eu não sou ela (ainda bem). Construí minha trajetória em cima do que acredito, que é a fraternidade e a comunhão de ideais; não sou um idealista egoísta, não quero enriquecer e comprar a SUV do ano e ter uma varanda gourmet (o que, eu sinceramente acho, que podem ser planos - legítimos! - dessa pessoa). Quero poder ter uma vida que seja boa para mim e para quem está no meu entorno - daí acreditar que um viaduto que cai e mata duas pessoas ferindo outras 23 não é um acidente, mas um incidente que tem implicações sociais e que, sim, o prefeito teria que arcar com certas responsabilidades. Mas não posso entrar na cabeça da outra pessoa e convencê-la disso, e tampouco o inverso.

Voltando ao título do post, eu ter saído do grupo e me afastado do povo, sem procurar o contato, não foi desleixo ou abandono. Foi desapego de uma situação que me incomodava, da qual eu precisava me afastar para poder visualizar melhor o entorno. O desapego pode ser a melhor forma de traduzir afeto, visto que ao se retirar você dá espaço que o outro necessita. Desapegar-se é dizer "vai, pode ir, do seu jeito". E não é abandonar, deixar de lado, mas de longe observar. Mas, de longe, contemplar. É como se eu quisesse que você, por exemplo, visitasse minha casa e desse o mapa para você se localizar. Eu não preciso estar do seu lado enquanto você faz o trajeto, eu tenho confiança e certeza que, mesmo que você erre uma rua ou outra, mesmo que você me ligue estando perdido/a, você vai conseguir chegar a tempo da festa, do almoço, do jantar ou da arrumação semanal. Tenho certeza nisso, independentemente do tempo que você gaste - vai que acontece um congestionamento e você se atrasa, por exemplo?

Não pense que se afastar é abandonar ou deixar de lado. Relações são acontecimentos complexos regidos por pessoas complexas e que têm suas especificidades. Se sua família não está empolgada para estar no seu aniversário, faça tudo o que lhe cabe para garantir a presença deles; se eles não forem, paciência, eles estão nos seus respectivos processos. E não nos cabe interferir de modo que fique forçoso. Convide, chame, insista; mas não arraste pelo braço. Não se preocupe com a resposta do outro e, mais ainda, não tenha medo da resposta do outro. O outro vai te dizer o que consegue te dizer (tô tentando exemplificar a Sabedoria do Espelho, primeira sabedoria do Budismo, que é base para o que chamamos de reconhecimento da alteridade). Foi onde eu falhei com essa pessoa, quando não reconheci o lugar onde ela estava, que o discurso que essa pessoa dizia refletia o seu modo de vida. Por um momento, talvez eu não deseje reatar os contatos com essa pessoa, mas eu percebo hoje de maneira mais lúcida que o embate foi não pelas vozes dissonantes, mas pelo fato de uma voz querer sobressair-se à outra.

---

Não se preocupar com o que o outro responde pode ser a melhor saída para evitar gastrites desnecessárias, ansiedades e frustrações inócuas. Porque tudo nessa nossa curta vida é impermanente, não vale a pena adquirir um câncer por conta de um ranço antigo; não vale a pena ter um derrame por nervosismo porque o outro não concorda de nenhuma forma com sua idiossincrasia; não é necessário perder dentes, cabelo, brilho dos olhos, vigor físico por conta de uma situação. Ela não vai permanecer, ela não é eterna tampouco efêmera. Ela apenas é. Interessante como Cristo coloca isso relacionando com a questão do Agora: quando ele diz "Eu Sou", apenas isso, ele não se colocaria como um ente magnânimo, onipotente e fodão; mas como o que ele é. Ele é o que é. E ponto. Nem mais, nem menos. Sem expectativas. (Não ter expectativas não é sem afinidades ou afeto; expectativa aqui tá visceralmente ligada com a questão da frustração.) Se apenas é, então deixe-a assim, que ela é não-permanente. Em última análise, ela não permanece à morte física.

Desapeguemos então de todo esse furor nosso de termos nossas idiossincrasias aceitas por todos. Se isso acontecesse, o mundo seria uma grande massa amorfa pasteurizada, e estamos longe, deveras longe, de sermos um igual ao outro. Desapego não é desleixo justo porque se você quer preservar, você tem que deixar brotar, deixar nascer. Como na música dos Doces Bárbaros, "o seu amor / ame-o e deixe-o / ser o que quiser".