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terça-feira, 4 de junho de 2013

Não puxeis a cordinha em vão

Era um dia meio cinzento. O ônibus se encontrava relativamente vazio - quer dizer: com todos os lugares ocupados, mas sem gentes espremidas pelas portas traseira e dianteira. O coletivo subia um dos viadutos da Lagoinha com sentido ao Centro de Belo Horizonte. E, vocês sabem como a nossa engenharia é deveras inteligente, a Antônio Carlos hoje é duplicada, mas os viadutos são os mesmos da década de 1980 - com duas faixas, muretas baixas e vazadas e, para piorar, o viaduto faz uma curva que, dependendo da velocidade do motorista, dá uma vertigem e um medo de cair na Estação Lagoinha, metrô (metrô, não, trem elétrico) localizado logo abaixo.

Voltemos ao ônibus. O coletivo já subia o elevado quando o rapaz deu o sinal. Ele se sentava à janela, e o moço que estava no corredor fez uma gentil menção de se levantar. Foi aí que o diálogo começou.

- Quer levantar, moço?
- Não, não. Obrigado, vou esperar ele parar no ponto.
- Mas, moço, você puxou a cordinha. O senhor vai ter que levantar.
- Levantar? Mas meu ponto não chegou ainda.
- Mas por que, então, o senhor puxou a cordinha?
- Uai, já para avisar ao motorista que vou descer no próximo.
- Mas todo o mundo do ônibus vai descer no próximo ponto. É o Centro...
- Bom, eu puxei porque eu quis. Só isso.
- Tá, mas uma vez puxada a cordinha, o senhor tem que se levantar.
- Gente! Pra que isso? Eu sempre puxei a cordinha ou apertei o botão e fiquei sentado esperando o meu ponto chegar!
- Senhor, isso é errado!
- "Errado"? Como assim?
- É, senhor! O senhor não pode puxar a cordinha e ficar assentado.
- Onde que isso tá escrito? A BHTRANS resolveu cagar essa regra?
- Não, senhor, tá aqui.
- Aqui onde?
- Aqui, no Nosso Livro Sagrado.
- ???
- É, senhor. No Nosso Livro Sagrado, tem um mandamento que fala isso.
- Mandamento?
- É. Olha aqui. Décimo primeiro mandamento:...
- Mas, peraí, não eram dez mandamentos?
- Não, senhor. Sempre foram onze.
- Como assim? Sempre aprendi que eram dez mandamentos, como não matar, não roubar...
- Mas tem o décimo primeiro, senhor. Que é esse daqui.
- "Não puxeis a cordinha do ônibus e permaneceis sentado, sob pena de pecado"? Mas que p...
- Olha o palavreado, senhor. Estamos num coletivo...
- Mas que pitomba é essa?
- É um mandamento. Tá aqui, escrito.
- Não vá me dizer que sempre foi assim...
- É, senhor. Sempre foi. Está escrito, assim procedeis.
- Então quer dizer que no Velho Testamento existia ônibus?
- Isso eu não sei, senhor, mas está escrito.
- E só porque está escrito você segue à risca?
- Uai, senhor, o que está escrito deve ser seguido. Conforme o que está escrito.
- Mesmo para o meu caso? Poxa, eu toda a vida puxei a cordinha e fiquei sentado...
- Pois é, senhor. Arrependa-se então para merecer o perdão.
- Perdão?
- É, senhor. Se o senhor permanecer sentado, tendo puxado a cordinha, o senhor está em pecado.
- PECADO? Ah, fala sério...
- Estou falando, senhor. Não estou inventando. Apenas seguindo o que está escrito.
- "Apenas seguindo o que está escrito". Falou, papagaio-de-pirata!
- Senhor, essa expressão é inadequada para o que o senhor quer dizer de mim. Papagaio-de-pirata é aquela pessoa que aparece indevidamente numa foto. Acho que o senhor quer dizer que estou de trololó.
- Esperto até que você é, hein?
- Com a bênção do Nosso Livro Sagrado.
- Nosso, vírgula! SEU livro sagrado.
- Mas ele pode ser seu também, se o senhor quiser. Basta...
- Me arrepender e levantar depois de puxar a cordinha.
- Isso, senhor.
- Até que chegue no Centro, eu vou ardendo no inferno...
- Mas, senhor...

E a ladainha do moço com o Livro Sagrado na mão continuou até que o ônibus (finalmente) chegasse ao Centro.



Conto baseado em fatos irreais, mas de contexto surreal.