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domingo, 14 de junho de 2015

Wishful Thinking – ou a outra definição do ser humano

Quem lida com discussões políticas, acaloradas ou não, em algum momento já deve ter se deparado com o termo whishful thinking, que eu interpreto como algo que não é somente a utopia, mas um desejo que muito provavelmente não vai se concretizar porque é fora de uma suposta realidade. Por exemplo, o PSOL ganhar as eleições presidenciais de 2014 não era um horizonte palpável, concretizável, mas a mínima, ínfima e remota possibilidade de se tornar real move as pessoas em torno desse ideal.

E tive uma surpresa ao ver Julio Cortazar usar o termo para fora dessa caixinha política. Eu to bem lá, lendo O Jogo da Amarelinha, quando chego no seu capítulo 71. Um capítulo, aliás, fundamental para quem se encontra numa lida diária pela transformação do mundo. É alquímico esse trecho do livro, e resolvi trasladar algumas partes dele para cá para vocês perceberem que interessante é a reflexão que ele faz. Se é ironia o que ele escreve, não sei. Tem sarcasmo, tem alegorias, mas tem algo que me deixou instigado.

 “...uma pessoa pode rir e pensar que não está falando a sério, mas sim, está falando a sério, pois o riso, por si só, já cavou mais túneis úteis do que todas as lágrimas da terra (...). Talvez haja uma saída, mas essa saída deveria ser uma entrada. Talvez haja um reino milenar, mas não é fugindo da carga de um inimigo que se conquista uma fortaleza.” 

No começo do capítulo, ele tenta discutir sobre o que será essa história de buscar um “reino milenar, um éden, um outro mundo” – e ele diz que tudo se tem orientado para a nostalgia – retorno ao útero e “o bom selvagem” são termos que ele cita para trazer isso à tona. Retorno ao útero, uma das alegorias mais interessantes para se pensar a volta ao começo, ao princípio. O útero é sempre considerado o nosso rancho acolhedor quando estamos numa situação pesada – tanto é que se estamos com questões e conflitos que não damos conta, nos submetemos à posição fetal para suportar isso. Quem nunca se pegou encolhido na cama, chorando em bicas, atormentado, sofribundo? Já o bom selvagem é o homem sem preocupações, que apenas vive e respira e come e se alimenta. Só isso já basta – além, claro, de ter o instinto aguçado pela sobrevivência, vai que aparece uma onça-parda na sua frente durante uma caçada? Corra, Bom Selvagem, Corra!

Mas eu acho que a gente já passou da fase de somente viver e seguir vivendo, não? Podemos ter desejos auspiciosos por mudanças, por realizações, por vivenciar novos processos. Podemos? Claro, mas sem nos furtar a desistir no primeiro tropicão. E é com certeza a parte mais difícil dessa tomada de consciência da caminhada, dessa busca pelo reino milenar – que é, na verdade, mas interior que exterior. Se dentro de casa tá tudo tranquilo, na rua possivelmente também estará. Agora, se tiver ruim dentro, pode colocar falsidade e máscara à vontade quando sair, isso vai cair.

“Pode ser que haja outro mundo dentro deste, mas não o encontraremos recortando sua silhueta no tumulto fabuloso dos dias e das vidas, não o encontraremos nem na atrofia nem na hipertrofia.”

Não vai ter outro mundo nem no oito, nem no oitenta. Me fez lembrar o Caminho do Meio, estratégia budista de buscar a consciência dos dias e dos tempos. Que não é na falta nem no excesso, nem na devoção ascética nem no materialismo niilista que as portas e janelas serão enxergadas – eu disse “serão enxergadas”, não que serão abertas; muitas delas já estão escancaradas, mas cadê coragem para atravessar o portal? Cadê uma visão mais lúcida para enxergar as portas abertas e evitar quebrar o nariz nas portas fechadas? Difícil ver isso se você se encontra numa névoa mental pesada – que só se dissipa, primeiro, se você sabe e se percebe dentro da névoa (opa... entrei numa neblina pesada... vou ter que ir mais devagar). O tumulto da vida e dos dias é essa névoa que embaça o momento presente. Se existe um desejo legítimo por mudança, ele não pode ser invisibilizado por essa névoa, mas percebido, a princípio, dentro dela. O mundo como está posto – o Samsara no Budismo, o Caos para os anarquistas, o Status Quo para os movimentos sociais, a Roda Viva – não contempla nossos anseios por leveza, mas não podemos ignorá-lo; é necessário vê-lo, percebê-lo e identificar com o quê não queremos nos identificar. Esse furor pelo dia de Santo Antônio, o “Santo Casamenteiro” – tá bom, gente, todo mundo pode ter o anseio que for, e casar é um deles. Mas será que é realmente necessário e saudável ir para uma fila de uma celebração na qual um bolo será distribuído com mil anéis no seu recheio e quem for contemplado/a com o anel é quem vai, digamos, poder casar? Que coisa mais materialista que é correr atrás de um desejo simplesmente porque ele tem que acontecer. Ou porque nos é ditado que a vida tem que correr obrigatoriamente por um caminho pré estabelecido – nascer, estudar, casar, ter filhos, ter netos, morrer. E ainda nos surpreendemos quando nossos avós morrem – mas não estava dado que isso acontecer? Então por que o sofrer? Tá vendo como é confuso e como é, mais do que importante, é necessário ressignificar nossas vidas? Sem crise quanto a casar e ter filhos, mas precisa ser nesses moldes samsáricos? Precisa ser dentro daquilo que o mundo/a sociedade impõe? Precisa seguir uma estética única? Precisa ser um momento de ostentação para a sociedade em vez de uma celebração de união? Uma reportagem que vi no Jornal Hoje, sobre essa distribuição do bolo de Santo Antônio, com o fim de permitir às mulheres “arranjarem” um marido (olha o verbo: nem é se unir, nem é conquistar, é ARRANJAR, como se o primeiro que viesse já estivesse bom porque o que é necessário é desencalhar, e não estar em uma relação estável e feliz) me incomodou deveras.

 “Além de tudo, é preciso ser imbecil, ser poeta, é preciso ficar a ver navios para perder mais de cinco minutos com essas nostalgias perfeitamente liquidáveis a curto prazo. Cada reunião de gerentes internacionais, de homens-de-ciência, cada novo satélite artificial, hormônio ou reator atômico esmagam um pouco mais essas enganosas esperanças.”

Eu sou um poeta imbecil – ou um imbecil poeta – por desejar um mundo (pelo menos para mim) menos caótico. Ou melhor, o caos nunca morreu e nem nunca morrerá, mas me considero um poeta imbecil – ou um imbecil poeta – por não me deixar afundar nesse carma. Como uma pessoa que se afoga e sabe que não pode entrar no jogo das águas, que necessita buscar recursos para não se deixar levar e falecer. Prefiro ser visto assim a me deixar pelas ondas, me afogar e viver uma vida mais ou menos. Se o que existe é cármico, quero me encontrar fora disso mesmo estando dentro. Não existe vida sem carma, a questão é quando o carma invade a calma.

Tudo pode nos ser tirado, mas a essência permanece. E dentro dessa essência, fica aí o recado para trabalharmos continuadamente nesse rolê danado chamado vida. Por menos expectativas e anseios dos resultados, por mais esperanças e vivências da caminhada.

 “Pode-se matar tudo, menos a nostalgia do reino, que levamos na cor dos nossos olhos, em cada amor, em tudo aquilo que profundamente atormenta e desfaz e engana. Wishful thinking, talvez; mas essa é outra definição possível do bípede implume.”

Aí, quando eu termino o texto e ele me parece concluído, o imponderável atua e me traz Fernando Brant – que recentemente fez sua passagem – para dar uma conclusão interessante a essa reflexão viajada da minha parte.

Poesia é meu pão
E a vida meu juiz
Meu destino eu mesmo é que fiz.

Meu coração, amar
Minha razão, brigar pelo país
A minha fé, sonhar
Minha paixão, viver solidário e contigo
É viver feliz.

Minha canção cantará
Quem souber esse caminho
Quem souber de lua e mar
Poesia espaço de criar
Quem não quer ficar sozinho
Que conjugue o verbo amar
Poesia espaço de brincar
Meu coração vencerá...