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domingo, 14 de junho de 2015

Wishful Thinking – ou a outra definição do ser humano

Quem lida com discussões políticas, acaloradas ou não, em algum momento já deve ter se deparado com o termo whishful thinking, que eu interpreto como algo que não é somente a utopia, mas um desejo que muito provavelmente não vai se concretizar porque é fora de uma suposta realidade. Por exemplo, o PSOL ganhar as eleições presidenciais de 2014 não era um horizonte palpável, concretizável, mas a mínima, ínfima e remota possibilidade de se tornar real move as pessoas em torno desse ideal.

E tive uma surpresa ao ver Julio Cortazar usar o termo para fora dessa caixinha política. Eu to bem lá, lendo O Jogo da Amarelinha, quando chego no seu capítulo 71. Um capítulo, aliás, fundamental para quem se encontra numa lida diária pela transformação do mundo. É alquímico esse trecho do livro, e resolvi trasladar algumas partes dele para cá para vocês perceberem que interessante é a reflexão que ele faz. Se é ironia o que ele escreve, não sei. Tem sarcasmo, tem alegorias, mas tem algo que me deixou instigado.

 “...uma pessoa pode rir e pensar que não está falando a sério, mas sim, está falando a sério, pois o riso, por si só, já cavou mais túneis úteis do que todas as lágrimas da terra (...). Talvez haja uma saída, mas essa saída deveria ser uma entrada. Talvez haja um reino milenar, mas não é fugindo da carga de um inimigo que se conquista uma fortaleza.” 

No começo do capítulo, ele tenta discutir sobre o que será essa história de buscar um “reino milenar, um éden, um outro mundo” – e ele diz que tudo se tem orientado para a nostalgia – retorno ao útero e “o bom selvagem” são termos que ele cita para trazer isso à tona. Retorno ao útero, uma das alegorias mais interessantes para se pensar a volta ao começo, ao princípio. O útero é sempre considerado o nosso rancho acolhedor quando estamos numa situação pesada – tanto é que se estamos com questões e conflitos que não damos conta, nos submetemos à posição fetal para suportar isso. Quem nunca se pegou encolhido na cama, chorando em bicas, atormentado, sofribundo? Já o bom selvagem é o homem sem preocupações, que apenas vive e respira e come e se alimenta. Só isso já basta – além, claro, de ter o instinto aguçado pela sobrevivência, vai que aparece uma onça-parda na sua frente durante uma caçada? Corra, Bom Selvagem, Corra!

Mas eu acho que a gente já passou da fase de somente viver e seguir vivendo, não? Podemos ter desejos auspiciosos por mudanças, por realizações, por vivenciar novos processos. Podemos? Claro, mas sem nos furtar a desistir no primeiro tropicão. E é com certeza a parte mais difícil dessa tomada de consciência da caminhada, dessa busca pelo reino milenar – que é, na verdade, mas interior que exterior. Se dentro de casa tá tudo tranquilo, na rua possivelmente também estará. Agora, se tiver ruim dentro, pode colocar falsidade e máscara à vontade quando sair, isso vai cair.

“Pode ser que haja outro mundo dentro deste, mas não o encontraremos recortando sua silhueta no tumulto fabuloso dos dias e das vidas, não o encontraremos nem na atrofia nem na hipertrofia.”

Não vai ter outro mundo nem no oito, nem no oitenta. Me fez lembrar o Caminho do Meio, estratégia budista de buscar a consciência dos dias e dos tempos. Que não é na falta nem no excesso, nem na devoção ascética nem no materialismo niilista que as portas e janelas serão enxergadas – eu disse “serão enxergadas”, não que serão abertas; muitas delas já estão escancaradas, mas cadê coragem para atravessar o portal? Cadê uma visão mais lúcida para enxergar as portas abertas e evitar quebrar o nariz nas portas fechadas? Difícil ver isso se você se encontra numa névoa mental pesada – que só se dissipa, primeiro, se você sabe e se percebe dentro da névoa (opa... entrei numa neblina pesada... vou ter que ir mais devagar). O tumulto da vida e dos dias é essa névoa que embaça o momento presente. Se existe um desejo legítimo por mudança, ele não pode ser invisibilizado por essa névoa, mas percebido, a princípio, dentro dela. O mundo como está posto – o Samsara no Budismo, o Caos para os anarquistas, o Status Quo para os movimentos sociais, a Roda Viva – não contempla nossos anseios por leveza, mas não podemos ignorá-lo; é necessário vê-lo, percebê-lo e identificar com o quê não queremos nos identificar. Esse furor pelo dia de Santo Antônio, o “Santo Casamenteiro” – tá bom, gente, todo mundo pode ter o anseio que for, e casar é um deles. Mas será que é realmente necessário e saudável ir para uma fila de uma celebração na qual um bolo será distribuído com mil anéis no seu recheio e quem for contemplado/a com o anel é quem vai, digamos, poder casar? Que coisa mais materialista que é correr atrás de um desejo simplesmente porque ele tem que acontecer. Ou porque nos é ditado que a vida tem que correr obrigatoriamente por um caminho pré estabelecido – nascer, estudar, casar, ter filhos, ter netos, morrer. E ainda nos surpreendemos quando nossos avós morrem – mas não estava dado que isso acontecer? Então por que o sofrer? Tá vendo como é confuso e como é, mais do que importante, é necessário ressignificar nossas vidas? Sem crise quanto a casar e ter filhos, mas precisa ser nesses moldes samsáricos? Precisa ser dentro daquilo que o mundo/a sociedade impõe? Precisa seguir uma estética única? Precisa ser um momento de ostentação para a sociedade em vez de uma celebração de união? Uma reportagem que vi no Jornal Hoje, sobre essa distribuição do bolo de Santo Antônio, com o fim de permitir às mulheres “arranjarem” um marido (olha o verbo: nem é se unir, nem é conquistar, é ARRANJAR, como se o primeiro que viesse já estivesse bom porque o que é necessário é desencalhar, e não estar em uma relação estável e feliz) me incomodou deveras.

 “Além de tudo, é preciso ser imbecil, ser poeta, é preciso ficar a ver navios para perder mais de cinco minutos com essas nostalgias perfeitamente liquidáveis a curto prazo. Cada reunião de gerentes internacionais, de homens-de-ciência, cada novo satélite artificial, hormônio ou reator atômico esmagam um pouco mais essas enganosas esperanças.”

Eu sou um poeta imbecil – ou um imbecil poeta – por desejar um mundo (pelo menos para mim) menos caótico. Ou melhor, o caos nunca morreu e nem nunca morrerá, mas me considero um poeta imbecil – ou um imbecil poeta – por não me deixar afundar nesse carma. Como uma pessoa que se afoga e sabe que não pode entrar no jogo das águas, que necessita buscar recursos para não se deixar levar e falecer. Prefiro ser visto assim a me deixar pelas ondas, me afogar e viver uma vida mais ou menos. Se o que existe é cármico, quero me encontrar fora disso mesmo estando dentro. Não existe vida sem carma, a questão é quando o carma invade a calma.

Tudo pode nos ser tirado, mas a essência permanece. E dentro dessa essência, fica aí o recado para trabalharmos continuadamente nesse rolê danado chamado vida. Por menos expectativas e anseios dos resultados, por mais esperanças e vivências da caminhada.

 “Pode-se matar tudo, menos a nostalgia do reino, que levamos na cor dos nossos olhos, em cada amor, em tudo aquilo que profundamente atormenta e desfaz e engana. Wishful thinking, talvez; mas essa é outra definição possível do bípede implume.”

Aí, quando eu termino o texto e ele me parece concluído, o imponderável atua e me traz Fernando Brant – que recentemente fez sua passagem – para dar uma conclusão interessante a essa reflexão viajada da minha parte.

Poesia é meu pão
E a vida meu juiz
Meu destino eu mesmo é que fiz.

Meu coração, amar
Minha razão, brigar pelo país
A minha fé, sonhar
Minha paixão, viver solidário e contigo
É viver feliz.

Minha canção cantará
Quem souber esse caminho
Quem souber de lua e mar
Poesia espaço de criar
Quem não quer ficar sozinho
Que conjugue o verbo amar
Poesia espaço de brincar
Meu coração vencerá...



quarta-feira, 22 de abril de 2015

Não é desleixo, é desapego

Pelo contrário: desapego é uma das mais transcendentais e importantes formas de demonstrar afeto.

Bom, deixa eu começar esse texto direito...

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No ano passado, fui acometido - assim como boa parte desta pátria brasileira - de uma verve deveras nervosa no que tange à questão das eleições e da política. Tive uma discussão sem fundamentos (do ponto de vista conceitual, já que foi uma conversa vazia típica do embate Petralha - eu - versus Coxinha - ele) com um colega meu de Colégio. Hoje, ele é uma pessoa bem sucedida - fez Unicamp, é de Exatas, vai viajar (eu acho) pelo Ciência Sem Fronteiras e, como bom Classe Média, odeia as benesses do atual governo - mesmo se beneficiando de um dos seus programas, justo o CSF, que o fará ir à Europa onde, segundo ele, a situação está melhor que aqui. Prefiro não comentar, eu ainda não consegui viajar para fora do Brasil para ter um julgamento tão assertivo assim.

Esse meu colega me excluiu do seu círculo de proximidades. Ganhei um ponto de salubridade, confesso, porque ele não é do tipo de pessoa que deseja um diálogo saudável, mas leva tudo para a questão da passionalidade. Eu também fui passional em alguns embates, mas tendendo a me abrir ao diálogo. Eu disse tendendo.

Após as eleições, passada a comoção, tive um outro momento de discussão com outro, digamos, "Coxinha". Era eu petralhando do lado de cá e ele coxinhando do lado dele. Tive algumas discussões pesadas no grupo de amigos do qual participava no Whatsapp. Preferi, quando entrou o ano, não mais tocar em assuntos polêmicos - me lembrei do motivo da discussão: quando o Viaduto Batalha dos Guararapes caiu ano passado, durante a Copa, essa pessoa disse que o "prefeito" Márcio Lacerda não tinha nenhuma responsabilidade sobre o que acontecera, e eu já acho o contrário - não é para ser "babá do cidadão", como já sugeriu o dileto Márcio, mas uma prefeitura não é uma empresa que você simplesmente delega as responsabilidades e foda-se o que acontecer. Nisso, o Exército traz um senso mais interessante de justiça, porque o que acontece dentro de um quartel do qual sou o comandante respinga em mim como comandante. Ou seja: mesmo não tendo responsabilidade técnica, Lacerda tem responsabilidade política diante a queda do viaduto. E essa pessoa não concordava com isso, e essa discordância para mim é um perfeito absurdo de quem não tem nenhuma sensibilidade sobre o que é gerir uma cidade. Gerir uma empresa, creio eu, ele (essa pessoa com quem discutir) pode saber; gerenciar uma cidade não deve, não pode seguir a mesma lógica.

Mas desde essa discussão a nossa relação anda estremecida. A gota d'água foi quando discutimos sobre o caso do viaduto que fica em cima da Estação Pampulha e que tinha apresentado um desnível. No whats, uma amiga tinha comentado que o desnível era de 10 cm, e ele comentou que foi de "apenas" 2,5 cm. Como se isso fosse a coisa mais irrelevante do mundo. Eu, que estava num shabbat offline para evitar conflitos, não me contive - quero dizer, agi racionalmente - e comentei de maneira irônica o comentário dele, com todos os elementos típicos de uma argumentação "provoque um coxinha" - um deles, dizer "ah, meu caro, faltou então você culpar a Dilma por isso". Puto da vida, ele me retrucou e eu, respeitosamente, mandei-o à merda. Ele, respeitosamente, me mandou de volta para o túmulo do offline. Respeitosamente obedeci, e saí do grupo.

Vinte e três dias se passam hoje depois desse episódio. E meus outros amigos do grupo ainda não restabeleceram o contato comigo.

E não vou entrar em contato tão cedo. Não por vingança nem nada, mas pelo desapego.

Eu tenho uma amizade com eles de 15 anos. São pessoas que mais que amigos são companheiros, pessoas que cresceram junto comigo (quero dizer, alguns só cresceram intelectualmente; fisicamente, permaneceram na linha dos 1,60 m... Tô brincando.) e que eu jamais desejaria magoar. Só que esses amigos também são amigos dessa pessoa com quem discuti. E, em respeito e reverência a eles, eu preferi sair do grupo do que sustentar uma situação que poderia desagradar, gerar outros tipos de desgastes desnecessários que, eu sei, teria condições de provocar.

Sabe aquele ditado de "os incomodados que se retirem"? Me incomodava a presença dessa pessoa no grupo, só que o resto do grupo não se incomodava. Me retirei por afeto aos meus amigos, às pessoas que admiro, às amizades que atravessam esse tempo todo e outros momentos difíceis. Me afastar foi uma prova de, digamos, alteridade. Quem sabe até mesmo compaixão - de perceber que aquela pessoa com quem tive os atritos não vai ver a situação sob o meu ponto de vista porque ela não é eu (grazadeus...) e eu não sou ela (ainda bem). Construí minha trajetória em cima do que acredito, que é a fraternidade e a comunhão de ideais; não sou um idealista egoísta, não quero enriquecer e comprar a SUV do ano e ter uma varanda gourmet (o que, eu sinceramente acho, que podem ser planos - legítimos! - dessa pessoa). Quero poder ter uma vida que seja boa para mim e para quem está no meu entorno - daí acreditar que um viaduto que cai e mata duas pessoas ferindo outras 23 não é um acidente, mas um incidente que tem implicações sociais e que, sim, o prefeito teria que arcar com certas responsabilidades. Mas não posso entrar na cabeça da outra pessoa e convencê-la disso, e tampouco o inverso.

Voltando ao título do post, eu ter saído do grupo e me afastado do povo, sem procurar o contato, não foi desleixo ou abandono. Foi desapego de uma situação que me incomodava, da qual eu precisava me afastar para poder visualizar melhor o entorno. O desapego pode ser a melhor forma de traduzir afeto, visto que ao se retirar você dá espaço que o outro necessita. Desapegar-se é dizer "vai, pode ir, do seu jeito". E não é abandonar, deixar de lado, mas de longe observar. Mas, de longe, contemplar. É como se eu quisesse que você, por exemplo, visitasse minha casa e desse o mapa para você se localizar. Eu não preciso estar do seu lado enquanto você faz o trajeto, eu tenho confiança e certeza que, mesmo que você erre uma rua ou outra, mesmo que você me ligue estando perdido/a, você vai conseguir chegar a tempo da festa, do almoço, do jantar ou da arrumação semanal. Tenho certeza nisso, independentemente do tempo que você gaste - vai que acontece um congestionamento e você se atrasa, por exemplo?

Não pense que se afastar é abandonar ou deixar de lado. Relações são acontecimentos complexos regidos por pessoas complexas e que têm suas especificidades. Se sua família não está empolgada para estar no seu aniversário, faça tudo o que lhe cabe para garantir a presença deles; se eles não forem, paciência, eles estão nos seus respectivos processos. E não nos cabe interferir de modo que fique forçoso. Convide, chame, insista; mas não arraste pelo braço. Não se preocupe com a resposta do outro e, mais ainda, não tenha medo da resposta do outro. O outro vai te dizer o que consegue te dizer (tô tentando exemplificar a Sabedoria do Espelho, primeira sabedoria do Budismo, que é base para o que chamamos de reconhecimento da alteridade). Foi onde eu falhei com essa pessoa, quando não reconheci o lugar onde ela estava, que o discurso que essa pessoa dizia refletia o seu modo de vida. Por um momento, talvez eu não deseje reatar os contatos com essa pessoa, mas eu percebo hoje de maneira mais lúcida que o embate foi não pelas vozes dissonantes, mas pelo fato de uma voz querer sobressair-se à outra.

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Não se preocupar com o que o outro responde pode ser a melhor saída para evitar gastrites desnecessárias, ansiedades e frustrações inócuas. Porque tudo nessa nossa curta vida é impermanente, não vale a pena adquirir um câncer por conta de um ranço antigo; não vale a pena ter um derrame por nervosismo porque o outro não concorda de nenhuma forma com sua idiossincrasia; não é necessário perder dentes, cabelo, brilho dos olhos, vigor físico por conta de uma situação. Ela não vai permanecer, ela não é eterna tampouco efêmera. Ela apenas é. Interessante como Cristo coloca isso relacionando com a questão do Agora: quando ele diz "Eu Sou", apenas isso, ele não se colocaria como um ente magnânimo, onipotente e fodão; mas como o que ele é. Ele é o que é. E ponto. Nem mais, nem menos. Sem expectativas. (Não ter expectativas não é sem afinidades ou afeto; expectativa aqui tá visceralmente ligada com a questão da frustração.) Se apenas é, então deixe-a assim, que ela é não-permanente. Em última análise, ela não permanece à morte física.

Desapeguemos então de todo esse furor nosso de termos nossas idiossincrasias aceitas por todos. Se isso acontecesse, o mundo seria uma grande massa amorfa pasteurizada, e estamos longe, deveras longe, de sermos um igual ao outro. Desapego não é desleixo justo porque se você quer preservar, você tem que deixar brotar, deixar nascer. Como na música dos Doces Bárbaros, "o seu amor / ame-o e deixe-o / ser o que quiser".

segunda-feira, 23 de março de 2015

Liberdade, essa palavra...

...que o sonho humano alimenta 
que não há ninguém que explique 
e ninguém que não entenda
Cecília Meireles tentou poeticamente traduzir o que seria essa tal liberdade. Creio que foi uma tentativa muito bem sucedida, visto que é mesmo difícil de se explicar o que significa essa palavra.

O sentimento de estar livre, sem amarras e poder elucidar e evidenciar as suas escolhas de acordo com algo que é para além do que você acredita, mas que é alguma coisa que você visualiza como a mais correta, a mais interessante - não que seja a única opção, mas quando se é livre se escolhe, se envereda por um caminho, você tem serenidade na trajetória e tem consciência da consciência da escolha.

Definição simples de execução complexa.

Todo o nosso conceito de liberdade expressa-se no ato da libertação ou da liberação. E eu acho que as três palavras - liberdade, libertação e liberação - tiveram suas interpretações um tanto deturpadas ao longo da trajetória humana. Podemos dizer que uma pessoa que se encontra reclusa está em privação de um tipo de liberdade, que é o livre andar; outra pessoa que está doente está privada de outra liberdade, que é a sanidade do corpo - saúde é um estado no qual o corpo está livre dos malefícios.

Se adoecemos, necessariamente temos que recorrer a alguns métodos que, temporariamente, podem nos prender a uma certa disciplina que, sabemos, irá nos libertar daquele mal. Eu, como bronquítico, sei o que é ter que ficar pelo menos uma semana tomando antibióticos para poder melhorar das sinusites (ainda bem que, desde 2010, eu não tenho nem uma crise mais pesada).

Continuando no exemplo da doença, então, que eu acho que assim me farei ser compreendido. Eu, Bruno, sou uma pessoa que é alérgica. Já tive muitas crises daquelas pesadas, bem pesadas mesmo, de cair de cama de gripe ou de a sinusite atacar toda a fronte da cabeça, me deixando sensível a quaisquer luminosidades. E eu tenho notado que, de uns anos para cá, essas crises mais pesadas foram gradativamente diminuindo. Talvez tenha a ver com o processo de análise psicológica, talvez com acupuntura, talvez com algumas atividades físicas que fiz no meio do caminho, como a natação. Mas é perceptível a minha melhora de dez anos para cá - até meus 18, pelo menos uma vez por ano eu caía de cama. Quando eu fico(ou ficava) doente, tinha que me submeter a alguns procedimentos para melhorar e retomar a minha saúde normal. Antibióticos, antialérgicos, anestésicos, antitérmicos faziam parte do coquetel. Não, não tudo ao mesmo tempo, antibiótico só em último caso; mas antialérgicos (Polaramine e Histamin) são combativos e nos deixam bem sonolentos, por exemplo.

Daí, você se vê numa cama, sem ter muito o que fazer, a não ser esperar o remédio fazer efeito. Bom, na verdade, se você for uma pessoa turrona, vai querer sair na chuva do jeito que está, e aí você não melhora e pode até mesmo piorar. Se você for paciente (no sentido figurado), vai aguentar até a febre abaixar e o corpo dar sinais de recuperação. Para que você, aí sim, possa voltar a se molhar na chuva com mais tranquilidade.

O que é a liberdade senão a consciência de que você está passando por um processo pelo qual você tem que passar e, positiva e conscientemente, escolhe isso para poder dar o passo adiante? As escolhas que tenho feito na minha vida, desde o final do ano, podem suscitar vários questionamentos, do tipo "mas você não está se prendendo a isso?" ou "você não se sentiria livre se saísse dessa situação?". A liberdade está em eu poder dizer com a leveza e a tranquilidade de uma pluma que "gente, eu escolhi isso não por pressão, mas porque eu desejei, eu quis e ainda quero". Quando você se projeta positivamente, sem quaisquer amarras de pressão social ou algo do tipo; quando você percebe que é essa a escolha que vai fazer a diferença para melhor; quando você se toca e percebe que o que já passou ficou, mas que pode retomar de outro ponto, sempre almejando avançar na caminhada; quando tudo isso é feito se descolando da Roda Viva, com uma observação consciente de si mesmo, como não dizer que me sinto livre?

Por muito menos já me senti obrigado, direcionado. Nos tempos de Colégio e nos tempos de faculdade. A seguir um caminho que, posteriormente percebi, eu não deveria trilhar porque seria infeliz. E felicidade, como eu já disse antes, não é busca, mas presença. Eu estou fortemente presente nos meus processos de reforma interior, e digo que me encontro livre para escolher e trilhar o caminho que quero andar. E o que eu quero, perguntaria você.

Quero, como disse no texto que escrevi no fim do ano, receber você com a casa arrumada. Pode ser que seja a sua vez de arrumar a casa para me receber, a minha só não está tinindo e retinindo porque falta uma mão sua. Mas está beeeeeeem melhor, beeeeeeem mais organizada do que antes. Nossa, se você pudesse ver - bom, na verdade, você até já deu uma espiadinha, agora falta você se aprochegar com mais calma, ficar para tomar um café, comer um bolo, arrumar a mesa para fazer um jantar e, vendo que a hora está avançando, em vez de pegar um táxi e ir para casa, aproveitar dos móveis novos recém-comprados para fazer deles cama. Bom, mas, vá lá, acho que você pode ate ficar com certa vergonha porque talvez a sua casa esteja desarrumada - e não estou julgando ninguém por causa disso, é apenas uma constatação, longe de mim eu querer julgar algo ou alguém, sabe?, não é isso. Mas se eu posso te receber na minha casa, eu fico no aguardo para você me receber na sua. Não precisa estar um primor de limpeza, que daria inveja a qualquer pessoa com TOC; mas eu sei, eu sei, você precisa arrumar a casa... Eis onde a questão de se sentir livre reside: de poder oferecer o tempo necessário à outra pessoa para arrumar a casa e me convidar para visitar. Isso implica dizer, também, que não posso descuidar da minha casa, tenho que mantê-la em ordem - já disse, não precisa ser um primor, mas também não precisa ser um pardieiro.

E o que é liberdade senão a presença (física, espiritual e psicológica) de poder vivenciar esse processo por uma escolha sincera e motivada? O que é liberdade senão poder dizer "acredite, eu não me sinto preso; aliás, acho que nunca me senti tão livre, porque escolhi"? Sim, uma escolha consciente, racionalizada, embasada num viés positivo de que é um sonho realmente concretizável. Livre me sinto para poder me encaminhar naquilo que quero investir. Sonhos não envelhecem, e liberdade é o que nos faz verdadeiramente sonhar.

domingo, 1 de março de 2015

03:57-Insônia

Desperto-me. Estou no quarto. Parece que vai ser mais uma crise.

Tento me virar de um canto a outro. Faz calor, a janela está entreaberta. O lençol acolhe o meu corpo.

Abra os olhos. Olhos despertos. Olhar aberto. O teto é o único ponto de referência.

Viro-me. Tento me encontrar na cama. Não dá. O calor me incomoda, mas se eu tiro o lençol sinto frio. Resolvo me levantar. E ir ao banheiro - acordar para ir ao banheiro é uma coisa rara de acontecer. Mas que tem sido frequente.

No movimento de despertar, segundos antes de ir ao banheiro, surge um pensamento.

Por que acordei? Por que estou desperto?
De novo isso? Por quê, Espiritualidade?

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Não me são comuns crises de insônia. Eu tenho certa facilidade em dormir, pegar no sono é de boa para mim. Insônia em mim poderia ser, talvez, um sinal de mudança de hábito. Ou de preocupação.

Sim. Preocupo-me às vezes em demasia. E eu sou meu principal alvo.

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Relógio marca 3 horas, 57 minutos. Depois do banheiro, um copo de água. Desligar o rádio que adormeceu cantando. E tentar pegar no sono de novo... Ou ligar a TV e tentar ver alguma coisa? Já fiz isso uma vez, deu certo, mas não foi muito produtivo, o sono seguinte foi pesado e intermitente. Dessa vez, voltei para a cama. Preocupado em querer dormir logo, chegar a manhã logo.

Não deu. O teto, a parede, a cama foram meus cenários. Não uma paisagem onírica. Era tudo muito real.

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Despertar-se e se perceber em insônia é como acordar de um sonho bom por ter caído num buraco. A sensação é desconfortável, você vira de um lado a outro e não encontra nenhuma âncora que possa te deixar aprofundar no sono.

Passam-se minutos. Vários. Quase uma hora. Para que enfim eu adormecesse novamente.

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Não são seis horas. Começa o tilintar de alguns pássaros. Lá vou eu de novo ao banheiro. Que diacho, essas idas todas lá têm um pano de fundo que eu não tô conseguindo entender. E não é pouca urina, mas até uma quantidade razoável. O que meu corpo está produzindo que quer tanto expulsar? O medo de não conseguir adormecer novamente? A vontade de impulsionar as coragens adiante?

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Sete horas. Oito horas. Dorme, Bruno, dorme. Ouve os pássaros e dorme. Tenta relaxar.

Tento deixar o corpo leve, mas algo, alguma coisa, me pesa. Me sinto acorrentado, quero correr, mas não consigo. E fico numa expectativa de, na próxima noite, poder dormir melhor.

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Insônias podem me ensinar a me reencontrar. A buscar um caminho para retornar ao sono e, na hora adequada, acordar. Elas me cansam, me deixam o corpo pesado, mas são momentos também de reflexão. A principal pergunta: por que estou acordado se poderia estar dormindo? Ou, melhor, por que acordei na hora de dormir? Não, não era simplesmente para ir ao banheiro, eu realmente não tenho esse costume. O que uma noite insone pode me mostrar?

Que, talvez, eu necessite ter mais tranquilidade. Mais equilíbrio. Estou vivenciando um processo interno (e exterior) de mudança, de transformação. Já me disseram de alguns aspectos que mudaram em mim - e eu mesmo me percebo diferente, como estar mais chorão. Sim, dá vontade de chorar quando acordo com insônia. Porque bate um desespero de "e agora, será que vou ficar o resto da noite acordado?".

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Lembra quando eu disse que estava passando por uma reforma em casa? Ela está bem avançada, diga-se de passagem. Tenho contado com a ajuda de várias pessoas - deste e do outro plano - para poder me manter firme no propósito. Sim, eu persisti em me arrumar para te perceber e, veja você, rolou algumas boas notícias. Mas mesmo se você ainda não se sente confortável em pousar aqui, eu te convido a entrar, visitar e assentar morada. Talvez a insônia seja a preocupação (antecipada) de saber a hora que você vai chegar.

Tenho o hábito gostoso de receber as pessoas em rodoviárias e aeroportos. Nunca é um momento chato e entediante para mim, pelo contrário. Saber que aquela pessoa vem naquele ônibus ou naquele voo e que o ônibus e o voo estão a caminho é algo que me deixa esperançoso e confiante na sua chegada. Pode ser que a insônia seja uma manifestação dessa ansiedade, da hora (exata) do pouso, da chegada do ônibus, do desembarque, do momento de pegar as malas e, depois, do momento do abraço de retorno, de chegada. Não é qualquer abraço, mas mais do que uma pequena morte, é um momento de aperto, de afago, de acolhida.

Para além de um abraço físico, o abraço da chegada é aquele que recebe com tudo que aquele que espera tem de bom para doar. O momento do retorno é aguardado tanto por quem chega quando por quem recebe no terminal. E que momento gostoso é poder retornar aos braços de quem você gosta, de quem você ama, de quem você quer estar do lado. Que potência tem um abraço que, para além de abraçar, agarra e afaga.

Foi a partir de uma reflexão sobre a insônia que cheguei aqui. Veja se não é algo que, novamente, temos que agradecer...

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Gratidão

Em vez de dizer "muito obrigado" ou "valeu", tenho experimentado usar outra fórmula. Responder aos bons (e maus) acontecimentos com "Gratidão".

Hoje serei breve.

Parece esquisito, e na verdade é. Não estamos acostumados a agradecer dessa forma aos eventos e acontecimentos que nos sucedem. Agradecemos, geralmente, às pessoas. A acontecimentos, ou ficamos inertes (na mesma) ou repudiamos - como um espinho que entra na nossa unha quando vamos colher uma rosa. É um acidente de percurso, a gente sabe que rosas têm espinhos, mas nos acidentamos em sermos espetados. Várias palavras poderiam ser proferidas no momento - palavrões, principalmente, porque a dor de um espinho que entra é doída demais -, mas depois de passada a dor, a gente continua no mesmo ofício de colher a rosa.

E se fizermos um paralelo disso com o nosso processo de sofrimento na Terra? Na hora que o espinho entra, diga-se de passagem, até procuramos ajuda; depois que o espinho se vai, até que podemos ter a tendência de tomar mais cuidado para não nos espetarmos novamente; e quando nos espetamos, a gente se acha muito burro, incapaz, e dá-lhe autocrítica pesada.
Depois que o espinho se vai, a gente nem presta atenção no aprendizado que aconteceu.

A gente simplesmente joga o espinho fora e continua nossa colheita.

E se a gente dissesse "gratidão" ao espinho?

E se a gente enxergasse o espinho como uma chamada de atenção para os nossos processos automáticos de colheita de rosas? Não, não quero dizer que daqui para frente temos que entrar numa neura exagerada de evitar ao máximo os espinhos - em última análise, cancelar a colheita para evitar os espinhos. Mas o espinho serve para dizer "ei, eu estou aqui, eu também faço parte do caule da rosa, tome cuidado", como advertência para uma constante atenção na hora que formos colher a rosa.

Eis o que é o sofrimento. Ele não deve ser algo totalmente nefasto - mas, claro, a gente não pode viver no mar de sofrimento ad eternum. O espírito Batuíra tem uma mensagem legal sobre isso, chamada "Dor, Sublime Companheira":

Guardemos a receptividade necessária através da qual nos será possível assimilar o auxílio do nosso Divino Mestre.
A luta é grande, como não podia deixar de ser.
Para consolidar o serviço da Espiritualidade Superior na Terra, somos obrigados a sustentar o embate incessante contra as forças destrutivas de nosso próprio passado. Somos herdeiros diretos de séculos de violência e discórdia, bárbaros impulsos e paixões fulminativas.
A dor é a companheira e mestra que não devemos interpretar por agente de aflição e sim por bênção. Louvemo-la!
Através dela é que podemos levar aos nossos adversários a certeza de nossa renovação; e será com ela que escreveremos os princípios do Senhor na livro da alma a fim de que a, nossa consciência caminhe vitoriosa.

Não, gente. Calma. Não tô falando agora para virarmos todos masoquistas. Não é isso!

A mensagem vai além dessas questões tipicamente mentais e racionalistas demais. A dor é um processo de regeneração, de mudança. E de percepção da consciência. Quando você está com dor de dente, significa algo, não? Ou dor de ouvido, dor no pé, enfim, a dor é companheira porque ela nos revela o que está incongruente em nós. A dor nos motiva à busca de um diagnóstico (no caso médico) e de um conforto (no caso espiritual). Vê aí então se não é possível que não sejamos gratos a ela!

A dor / o sofrimento nos instilam o sentimento pela busca da cura. Da transformação. Da mudança. O sofrimento é um passo importante para essa caminhada - não é o caso de perpetuá-lo, mas enxergar o seu lugar. Não é ver que está se afogando e continuar engolindo água - é dado àquele que se afoga o direito de se salvar, não? Sendo assim, o sofrimento nos faz enxergar uma adversidade que nos motiva (opa!) a sair dessa adversidade. Estou sendo claro?

O sofrimento é o próprio motivo para parar de sofrer. O espinho é o próprio motivo para que ele seja retirado do dedo. Não significa que iremos parar de colher rosas, isso é fácil demais. O desafio é continuar a colheita observando os espinhos e, em uma eventual picada, observar e dizer "gratidão", porque em última instância ainda tenho dedo (rsrs).

É muito mais fácil ser grato no amor que no sofrimento. Se a gente puder perceber que o sofrimento pode nos catapultar para avançar, ah!, a gente não paralisaria nele. O medo não teria mais lugar. Nós temos vários medos - continuando com o exemplo, o medo de se ferir com o espinho novamente. Mas quem foi que disse que a vida é tão somente colher rosas? E como é possível colher rosas sem lhes tocar os espinhos? Como é possível sequer se aproximar delas sem saber a existência dessas farpinhas pontiagudas?

A rosa tem espinhos. O abacaxi tem sua coroa. A melancia tem seus caroços. A estrada tem seus buracos. Vamos então nos paralisar diante da caminhada por medo de machucar nos espinhos? Acho que o que temos que fazer é olhar para esses percalços e agradecer e abraçar. Gratidão pela estrada com os seus buracos, porque eles nos permitem ter mais atenção ao caminho. Gratidão pela rosa e seus espinhos que nos fazem estar atentos na hora de colher.

Gratidão pela escrita deste texto. Gratidão pela sua leitura. Gratidão.


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Felicidade? Não necessariamente. Plenitude.

A catarse é assim: primeiro, você vomita tudo, bota tudo de ruim pra fora; depois vem o soro caseiro para aliviar a situação de inanição; e depois você volta a se alimentar, só que de maneira mais adequada, com vistas a evitar o que te fez mal.

Eu e minhas metáforas...

Minhas últimas postagens foram focadas muito nessa reflexão do que fui, do que tenho reconstruído. Do caminho que tenho percorrido para ter um mínimo de sossego interno e poder trilhar um bom caminho. Não é fácil, mas estamos aí, andando adiante.

Me foi pedido que, além de eu colocar à tona a consciência de alguns sentimentos e a forma de como eles persistiram e se modificaram com o passar dos anos, que eu pudesse mudar um pouco de perspectiva, escrever sobre uma lembrança boa, uma situação que me deixou feliz ou um sentimento que eu goste.

Pois bem. Estou aqui eu refletindo sobre isso. E chego a uma conclusão de que perceber as grandes e pequenas felicidades da vida é algo que por muitas vezes não chegamos a nos dar conta.

Deixa eu começar do começo.

Desde o final de 2014, estou tendo algum tipo de contato sistemático com a meditação. Conheci uma galera que se reúne semanalmente para poder refletir não somente no Budismo como "religião", mas como religião no sentido etimológico de "religamento" com o Eterno, o Etéreo, o Ser. E, particularmente, a última reflexão me despertou uma vontade de compartilhar algumas coisas.

A reflexão que fizemos passou por nos situarmos como promotores e responsáveis por uma mudança interna em nós e no ser. Que tal mudança promove liberação de nós e dos outros seres, e de como é bom podermos sentir felicidade nesse sentido. Como é bom podermos estar tranquilos conosco mesmo.

Existe uma coisa no Cristianismo (principalmente católico) que é a figura do Cristo que morreu para nos salvar. Da personalidade que desceu dos céus para nos encontrar e que por meio de um ato de amor nos liberou dos pecados. O que pondero é que, não sei se vocês já chegaram a perceber, mas existe um culto ao Cristo que se encontra no madeiro, afixado, pregado (sem trocadilhos) e em sofrimento. Poxa vida, o Cristo viveu 33 anos, evangelizou bastante, trouxe uma palavra de amor e paz, é um espírito deveras iluminado (assim como Krishna, assim como Buda, assim, como Maomé, como Confúcio e tantos outros) e nós vamos nos apegar, para que não esqueçamos, à sua imagem mais sofrida... Creio ser daí o sentimento que a gente tem de "culpa", e o que se apelidou de "culpa cristã", que já acho que é mais "culpa católica apostólica romana". Mesmo porque há outras vertentes do Cristianismo (Espiritismo, por exemplo) que não contemplam essa imagem de Jesus na cruz; tem um amigo meu, palestrante, que sempre faz questão de lembrar que Cristo também sorria, e que tal imagem é que devia nos seguir - não do Cristo carrancudo... Daí, fui pensando que (olha a minha viagem) pode ser proibido ser feliz porque a gente teria que toda hora lembrar que existiu um ser iluminado que se sacrificou por nós; e tal sacrifício não é, digamos, "feliz"; daí, temos sempre que, em última instância, venerar uma certa humildade revestida de tristeza e dor. Como se ficássemos eternamente de cabeça baixa porque, ao olhar para cima, contemplaríamos o Cristo crucificado e essa imagem nos faria abaixar a cabeça em sinal de complacência.

Tem uma cena (genial!) do filme (genial²!) "Monty Python em busca do Cálice Sagrado" (o meu favorito dessa turma) que faz uma crítica a essa posição de subalternidade:

http://youtu.be/OdT5uO2LPG8?t=23m42s

Semioticamente falando, a gente (por meio da cultural culpa católica) é barrado de ser feliz porque isso talvez seja um ultraje ou ao Cristo crucificado ou ao outro que se encontra em situação pior que a nossa.

Mas... não é modificando a gente que modificamos o ambiente? Que coisa, essa galera tem hora que parece contraditória...

Enfim, estou divagando pra caramba dessa vez. Até mesmo para poder encontrar alguns momentos de felicidade ou, melhor dizendo, no qual eu estivesse feliz.

E é essa a chave que eu quero virar. Que, na verdade, foi uma ficha que demorou a cair para mim.

A "busca pela felicidade" é ilusória. Porque felicidade demais ou tem que ser compensada com o seu oposto ou é inatingível porque iremos sempre querer mais e mais felicidade. Estaremos sempre insatisfeitos, incompletos, e não conseguiremos perceber a grandiosidade dos versos de Gil quando fala que "o melhor lugar do mundo é aqui / e agora".

E para que seja perceptível isso, você não pode (ou não deve) ser alegre ou feliz o tempo inteiro. Porque conceitos de felicidade variam - não são os mesmos os conceitos de felicidade de um gótico e de um hippie, por exemplo. Por ser relativa, eu proponho que em vez de falarmos de felicidade stricto sensu, que possamos pensar para além dela - porque é claro que haverá momentos nos quais estaremos não tão felizes assim.

Pensemos na questão da plenitude como a possibilidade de perceber o que nos alegra, o que nos motiva, o que nos chateia e o que nos impede de caminhar. Se nos detivermos apenas em um desses aspectos, a gente inevitavelmente trava, porque entramos num processo mental tão pesado que é difícil de se desvencilhar. No Budismo, é a Samsara, o mundo como o conhecemos, que talvez possamos dizer que é "caótico". Sabe quando a gente fica imerso no que muitos chamam "Roda Viva"? Quando você acha que vai ser sugado e tratorado pela engrenagem da vida? Pois é, digamos que é mais ou menos por aí. Buscar pela felicidade é entrar na roda do caos, porque:

- você busca felicidade;
- você encontra algo que te faz feliz;
- esse algo que te faz feliz consegue te impulsionar para caminhar;
- chega um inevitável determinado momento que você se "cansa" dessa conquista (um emprego que você queria muito, suou para conquistar, mas depois de entrar nele viu que era, Bino, uma cilada);
- logo, você é acometido de uma frustração porque não era exatamente aquilo que você pensava que era - repito, não era o que você pensava;
- essa frustração te gera angústia;
- essa angústia te faz refletir: continuo aqui ou saio desse processo? (Continuo nesse emprego porque já que lutei muito e abrir mão dele seria "injusto" - olha a culpa aí assolando sua cabecinha - ou saio dele e vou novamente em busca de algo melhor?);
- independentemente do caminho que você vai seguir, você, pela frustração, já saiu do processo de felicidade, você não está mais sentimentalmente ligado àquilo que você tanto queria; tanto continuar do jeito que está como recomeçar é difícil, é doloroso, é desgastante;
- você modifica o seu caminho em busca da felicidade;
- e o ciclo continua.

Quando se tem a plenitude como companheira, em vez da sua mente atuar de forma a pensar que aquilo é o melhor ou não, você dá um passo atrás e percebe que, independentemente da escolha, aquilo te traz crescimento. Te traz formas de você seguir com mais leveza. Você pode estar doente, mas a plenitude te dá formas de, em vez de perseguir obstinadamente a cura somente, perceber o seu processo (como você chegou ali, como você está e como você deseja ficar) temporal de caminhada. Nós temos uma noção muito limitada de felicidade como algo finalístico e teleológico - a própria expressão "em busca da felicidade" diz isso, que futuramente seremos felizes e gozaremos das nossas conquistas. Me lembra um causo do caipira e do cara da cidade. O cara da cidade chegou pro moço caipira oferecendo trabalho na urbanoide, e o caipira questionou.

- Moço, o que eu ganho indo pra cidade?
- Oras - respondeu o cara da cidade -. você vai poder fazer uma carreira.
- Como?
- Você vai trabalhar bastante. E aí vai ficar conhecido.
- Pra quê?
- Pra poder ganhar um bom dinheiro.
- Pra quê?
- Pra poder fazer um investimento, uma poupança...
- Pra quê?
- Pra que seus filhos cresçam com saúde e que você possa investir, por exemplo, numa casa no campo para descansar.
- Mas, moço, eu já moro no campo... Pra que eu vou pra cidade?

Percebem a cilada? O moço da roça sairia da roça para a cidade para, depois de desgastado, voltar para onde ele já estava, a roça. Numa alegoria, é como se estivéssemos querendo sair de um estado no qual nos consideramos insatisfeitos para ir, futuramente, onde possamos estar tranquilos.

Por que, então, não dizemos que já estamos felizes? Ou que tal busca pela felicidade não é teleológica, mas do momento? É pecado dizer que somos felizes com o pouco que temos e com o pouco que somos? Para que ostentar "felicidades"? Odair José já disse: "Felicidade não existe / O que existe na vida são momentos felizes". Eis a chave para enxergar a plenitude: que esse conceito cristalizado de felicidade (material, afetiva, psicológica) é transitória porque é assim que é a vida. Efêmera, transitória, impermanente. Viver cada minuto como se fosse o último não deve dizer respeito a tão-somente viver como se não houvesse amanhã; mas nos revela que ser feliz é do agora, que amanhã podemos ser mais felizes que hoje - mas só poderemos ser mais felizes amanhã se já formos hoje.

Posso dizer que minha primeira viagem a Diamantina, em agosto de 2005, foi um momento feliz. Mas durou aquele momento - e, se eu cair na besteira de ser nostálgico e querer repetir aquele momento, eu vou obrigatoriamente me frustrar.

Posso afirmar que minha primeira viagem de avião, em fevereiro de 2011, foi um momento de excitação tremenda. Pelo olhar da busca da felicidade, para repetir aquele momento eu teria que estar sempre a 30 mil pés de altitude; pelo olhar fraterno da plenitude, a gente percebe que aquele momento não se repete, mas que é possível trilharmos caminhos para que viajemos com mais frequência de avião.

Viagens são momentos felizes. Quando saímos do nosso cotidiano e partimos rumo a outros locais - conhecidos ou não. A viagem pode ter seus altos e baixos, e isso é da vida. Ficar insistindo em só querer que a viagem seja boa é buscar a felicidade; perceber que nessa mesma viagem teve coisas boas e ruins é plenitude. É não se agarrar à sua mente ditatorial e perceber o todo sensorial.

Claro que tive vários momentos de felicidade. Mas todos entravam nessa roda viva cíclica. Mas teve um dia em especial que me marca até hoje e que me deixa feliz dentro desse conceito de plenitude, de saber que foi um evento especial, mas que percebi sob um amor maior. Esse dia foi 7 de dezembro de 2012, quando me foi dada a oportunidade de começar uma vida bem diferente da que eu até então já tinha vivido. Se eu analisar a data pelo viés da felicidade, creio que, como qualquer data, é efêmera e já passou, a meta seria buscar outra coisa para pôr em cima, digamos; pelo olhar da plenitude, é possível de se perceber o quanto que uma data e o seu após trouxe direcionamentos que convergiam diversos sentimentos.

Bom, isso pode ser pauta pra outra matéria porque esse caldo rende. Desligue o motor do carro antes, porque a resenha vai durar...

Em tempo: não estou dizendo que é para esquecermos a felicidade. Estou querendo dar um toque para pararmos de buscar por ela. Esqueça esse conceito superficial de felicidade como algo a conquistar, como objetivo futuro. Perceba que é mais que isso. Mais que ficar perseguindo algo futuro sendo que o nosso maior presente é a oportunidade de enxergarmos o nosso entorno, de sermos gratos com a nossa atual condição; de trabalharmos, sim, pelo aprimoramento, mas começando com o que se tem.

Feliz é aquele que pode começar, recomeçar, perceber-se a si mesmo e caminhar. Isso que eu chamei aqui de plenitude é esse trabalho de percepção, que vai além do que se vê.

Daí você me pergunta se sou feliz. Eu sinceramente titubeio, fico em dúvida. Justo porque felicidade é esse conceito materialmente vago que para muitos podem ser emprego, casa, comida, sexo, filhos etc. Em vez de me perguntar e de se perguntar se estou feliz, pergunte-me e pergunte-se apenas como eu ou você estamos. Não se apegue à resposta, apenas diga o que seu coração está neste momento se comunicando. Captou a mensagem do coração? Pois bem, bem vindo à plenitude. Isso que é o mais legal da história: não é o que você diz, mas como você se percebe quando diz. E isso é um estado que, pelo menos para mim, é mais importante que o sentimento em si. É essa plenitude que vai orientar a gente a caminhar, sim, para um futuro melhor, mas que já se inicia no primeiro momento da nossa percepção.

E o que te faz feliz, Bruno?
Acho que é a possibilidade de enxergar isso tudo. Para além das coisas que me movem, como trabalho e amor, é perceber a consciência de que a falta de alguns elementos me deixa mais triste ou chateado. Mas é justamente não me levar pela chateação. Essa tomada de consciência me deixa desperto inclusive para correr atrás das coisas e das pessoas que me são importantes, sem me deixar levar pelo peso da responsabilidade. Essa consciência, talvez, é o que me deixa feliz.

Por isso, gente, reflitamos sempre sobre os versos de Gil:

O melhor lugar do mundo é aqui
E agora.



sábado, 10 de janeiro de 2015

Fugas para debaixo da cama

Se houve em algum momento da minha vida algo que fosse preponderante, esse algo era o medo.

Medo de apanhar, medo de perder o ônibus, medo de tirar nota baixa e apanhar por conta disso, medo de ser xingado por ter tirado nota baixa, medo de ser repreendido por ter chegado atrasado num compromisso.

Medo como fator de reticência diante de um ato ou de uma ação é até sadio. Eu tenho medo de pular de uma pedra numa cachoeira ou num lago porque tenho medo de bater a cabeça e me tornar um M. Rubens Paiva, paralítico.

Conheço pessoas que têm medo patológico de água. De mar, na verdade. Vão à praia e sentam à beira de onde a onda quebra. Quando a água vem, mesmo se tiver vindo fraca, a pessoa sai correndo, com medo do mar. Tal medo deixa a pessoa afastada desse contato tão benéfico com as águas de Janaína.

Medo, o oposto da coragem. Fui um moleque medroso, pelo do que consigo me lembrar. Havia figuras que passaram na minha vida que eu tinha o mais puro medo. Dona Marlene, ex-diretora da escola onde cursei de primeira à quarta série, era uma figura que me dava medo. Na época, com oito anos e na primeira série, ver seus cabelos ruivos tingidos e sua aparência nervosa me causava certo incômodo, certo medo de vê-la por aí.

Como eu tinha medo de apanhar. Pelo medo de apanhar, não era de fazer muita peraltice. Quando eu fazia uma coisa mínima - chegar atrasado 10 minutos ou deixar alguns bagos de feijão no prato -, a bronca era certa. Meu medo de ser punido também. Seja pela punição verbal, seja pela punição física, eu tinha medo de encarar meu algoz. Não, não era necessariamente um inimigo, mas sim um carrasco. Mesmo os nossos carrascos nos amam e demonstram esse amor por maneiras tortuosas e que não conseguimos compreender a priori. Esse algoz sempre falou mais alto, sempre se impôs, sempre quis se dar ao respeito. Sempre me botou medo.

Sempre me botou medo. Não me sentia seguro em me relacionar com as pessoas por medo do que os outros poderiam achar - e se meus pais vissem eu brincando com Fulano, que é filho de Sicrano, mó puxador de fumo?

Não me esqueço do dia que saí para jogar bola e não cheguei em casa no horário combinado. Ainda tentei levar um ex-amigo meu (hoje é ex-amigo, que me sacaneou durante a juventude; mas estou trabalhando pela sua liberação e que eu me libere de quaisquer sentimentos negativos em relação a ele) para amenizar a situação. As correias cantaram em dobro. O couro literalmente comeu as minhas costas. A autoridade se imperava, não tinha conversa. Pisou na bola? É castigo! Dos mais grossos, dos mais pesados! Correia e preencher um caderno escrevendo quinhentas vezes a mesma frase.

Não era do castigo em si, talvez, que eu tivesse medo. Mas da reação daquele que me o impingia. Era sempre uma reação muito dura, pesada e inflexível, de conversa e/ou tolerância zero.

Havia algumas situações onde eu "aprontava" - poderia ser uma má resposta, por exemplo - e eu, para me esconder, ia para debaixo da cama. Via os seus pés, passando de um lado a outro me procurando. Às vezes, usava um cabo de rodo ou de vassoura para me forçar a sair de lá de baixo. Ou (pode isso ser minha imaginação, OK?, eu não tenho certeza dessa imagem) se abaixar e jogar o chinelo para me acertar. Ou me ver e coercitivamente pela fala me obrigar a sair de baixo da cama. Saia de baixo da cama agora. Sai daí agora, seu moleque. Seu [não, não compensa ficar repetindo isso...].

Embaixo da cama não era necessariamente um refúgio seguro. Mas era para onde o medo me levava naquelas circunstâncias. Era medo que me empurrava para lá, um medo irracional contra um algoz idem. Um medo sem medida, cujo único parâmetro era a minha preservação, um instinto de sobrevivência que me chamava loucamente. Corre, se esconde. Mas, como se percebe, não durava muito tempo e eu sempre, sempre era descoberto.

Sempre era achado debaixo da cama. Sempre eu era retirado à força (da voz ou física) de lá. Sempre (ou quase sempre) havia uma reprimenda - verbal, moral, psicológica ou física. Por quê? Porque eu desobedecera. Por eu ter contrariado as regras.

Mas embaixo da cama, fora desses momentos de tensão, era um lugar que às vezes eu visitava. Não me lembro exatamente os motivos, se era alguma brincadeira comigo mesmo, mas essa imagem de eu estar lá de baixo e ver os pés passando à minha frente me traziam alguma coisa de afinidade - não digo conforto, porque não é confortável um alérgico ficar num ambiente deveras poeirento como embaixo de uma cama. Como se fosse uma caverna, um esconderijo, um refúgio que, mesmo não sendo meu, era onde eu me encontrava. Ou fingia que me encontrava. Ou brincava de me encontrar. Ou não me encontrava, apenas ia - pra que vamos ficar dando respostas a tudo nessa vida? Deixa as lembranças virem, depois a gente vê o que faz com elas...

Mas retomando: medos irracionais me fizeram ir lá para baixo. Para o ambiente insalubre e poeirento. Fugas, sumiços, formas de dizer "estou com medo" - ou "não tenho coragem" de enfrentar o algoz que está à minha frente. Me deixe aqui, diria eu a ele, inocentemente. Mas ele/eu não sabe/sabia que o algoz sempre puxa sua vítima para fora dessa caverna, dessa gruta, desse esconderijo. Sempre o algoz vai te expor, mesmo que seja a você mesmo, e fazer você se encarar como uma pessoa miserável, que não presta, que no menor erro acaba com tudo.

Somente eu que não consigo encarar o algoz que seria tão covarde a ponto de me esconder debaixo de uma cama. A cama onde dorme meu algoz. Não a minha cama.

Relembrar essa imagem de estar embaixo da cama, retomá-la me faz reanalisar essa questão do medo/coragem. Que por muito tempo eu tive medo de muita coisa - e digo que ainda tenho, mas pelo menos tô buscando coragem para poder encará-los de frente. Não posso mais utilizar esse refúgio de uso pueril, infantil, esse recurso, esse subterfúgio da brincadeira de se esconder sabendo que vai ser achado. Se é o algoz ou não, em algum momento eu serei achado e exposto pelo o que sou - não pelo o que representativamente pensou que posso ser.

Estou visualizando a imagem que eu tinha quando me escondia: as duas pernas quadradas de madeira da cama, o estrado com uma tábua branca larga no meio para suportar o peso, o colchão fino porém confortável. Virando 180 graus, a tomada onde o rádio relógio ficava ligado, as outras duas pernas quadradas da cama, a parede. Certa escuridão que não é total por causa da luz amarela da lâmpada incandescente que ilumina o quarto. Há passos, vejo pés passando à minha frente. Parte do lençol cai pelos flancos, mas não chegam a se arrastar no chão. Só tampam um pouco a minha visão, como um véu tampa os olhos da noiva.

É dada a hora de dar o chega. Que bom que tal lembrança me veio na mente. Então vamos liberando tudo isso, eu não preciso mais me esconder debaixo da cama. Não quero mais me esconder embaixo da cama, é empoeirado e eu espirro. É insalubre.

Eu já não uso mais o espaço embaixo da cama.

Não dá mais para me esconder embaixo da cama.

Mesmo porque eu cresci, e não caibo mais embaixo da cama.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Empatia e alteridade na selvageria do egoísmo

Empatia e alteridade. Por que as palavras se interconectam?

Vejamos a Wikipédia:

Empatia: resposta afetiva vicária a outras pessoas, ou seja, uma resposta afetiva apropriada à situação de outra pessoa, e não à própria situação. O termo foi usado pela primeira vez no início do século XX, pelo filósofo alemão Theodor Lipps (1851-1914), para indicar a relação entre o artista e o espectador que projeta a si mesmo na obra de arte.


Alteridade: concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende do outro. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam, a existência do "eu-individual" só é permitida mediante um contato com o outro (que em uma visão expandida se torna o Outro - a própria sociedade diferente do indivíduo).


Existe um fator simples que faz com que os verbetes empatia e alteridade estejam, de alguma forma, conectados. Se empatia é a capacidade de se colocar na pele do outro, respeitá-lo e compreender a sua forma de ser, de viver, de falar, ainda que em âmbito individual, não podemos nos esquecer que estamos imersos em um mar cultural que me impele a lidar com o outro. Se eu lido com o outro com empatia, compreendendo a sua especificidade, isso dentro do contexto social é alteridade. É o reconhecimento de que aquilo que você não é pode também ser respeitado, preservado e dignificado.

Alteridade está para a coletividade assim como a empatia está para a individualidade. Não falo de individualismo, mas do reconhecimento do sujeito em si mesmo. É complicado pensar em ser empático se não há o reconhecimento da alteridade, e não vejo possibilidade de exercer alteridade sem a citada empatia. Vejamos, no caso das religiões.

Recentemente aconteceu o atentado ao jornal Charlie Hebdo, em Paris (França). Não vou nem linkar nada, tá todo mundo recebendo rios e mares de informações - muitas delas truncadas - sobre o assunto. Está se atribuindo a culpa a extremistas islâmicos porque o periódico fazia piadas com Maomé, com os muçulmanos e afins. Fora dessa questão do humor, se foi adequado ou não, eu pergunto se há empatia em querer eliminar o outro apenas por eu discordar dele. Oras, se não há empatia, não há respeito pela sua alteridade; o individualismo egoico fala mais alto (eu eu eu eu eu eu eu e de novo eu) e suprime e anula o outro. Não concordo com o que você disse - BUM! te mato - pronto, aniquilei o outro. E ser empático com esse tipo de atitude não é a empatia que estamos dizendo aqui. É outra coisa, talvez simpatia, talvez certa camaradagem; empatia é que não é.

Diante desse cenário horroroso que aconteceu na capital francesa, surge também um questionamento sobre o respeito dos franceses nativos aos imigrantes, muitos deles oriundos de países outrora colônias da França - como a Argélia. Esse atentado pode (não só pode como vai) despertar a sanha fascista de querer eliminar aquele que te incomoda, aquele que você não quer que faça parte daquilo que você faz parte. Está se abrindo um flanco enorme para a que a ultradireita, racista e xenófoba, possa ter voz e vez. E o maior representante francês dessa ala é Jean Marie Le-Pen, o Pastor Everaldo das Europas. (A bem da verdade, pego pesado em comparar Le-Pen com Everaldo. São alas distintas de disseminação de preconceitos. Mas são perniciosos e perigosos.)

Essa classe de pessoas não acredita na alteridade como forma de sobrevivência da sua nação. Não veem na interação com outras culturas uma forma de, quiçá, dignificar a sua própria. São alheios, avessos à mistura. Sim, são pessoas que podem fazer tudo para colocar "as coisas no seu devido lugar" - pretos nos guetos, judeus no gás, gays nas masmorras, e por aí vai. Como não são nada empáticos com o que lhes é diferente, são completamente anti-alteritários.

Já que citei Everaldo... E o que dizer dos (sempre eles) evangélicos extremos que, vez ou outra, quebram imagens de Nossas Senhoras, de Iemanjás e destroem templos que não são afins à sua concepção, por mero ensejo de se proclamarem como “a verdade”? No ano retrasado, eu li uma reportagem do jornal O TEMPO sobre a opressão que os terreiros de umbanda e candomblé têm passado em Belo Horizonte por conta da ofensiva neopentecostal. Oras, se o Cristo ama a todos e a todas, ele não vai amar o praticante da religião afrodescendente por que motivo? Eu disse O CRISTO, não o Deus o Velho Testamento - que, geralmente, é proclamado nessas atitudes que eu considero de uma imbecilidade tremenda. Chega a ser engraçado quando, para dizer de amor, atualiza-se o discurso para aquilo que é mais novo - os evangelhos -, mas para falar de aceitar os outros lá vamos nós ao paranoico Levítico.

E eu posso dizer que passei por um grave momento de falta de empatia no ano passado. Prefiro não citar nomes para não ser arrolado em processos judiciais, mas eu já confidenciei a pessoas muito próximas a mim a minha vontade de eliminar da face da terra um certo gestor municipal que trabalha no 1212 da Afonso Pena. Tenho a plena certeza de que eu não era o único (rsrs), mas talvez seria um dos poucos que poderia, por meios diversos, colocar em prática esse plano. Por mais que essa pessoa enchesse nossa paciência municipal; por mais que ele tenha se mostrado como uma pessoa deveras inacessível, que não dialoga, de uma ironia que irrita; por mais que esse cara seja apenas um administrador que esquece as sensibilidades da cidade que administra, gerindo a cidade como empresa; por mais que tudo isso me subisse aos tetos do nervosismo, uma pessoa muito querida me fez enxergar que executá-lo a sangue frio não iria adiantar nada, somente iria piorar a situação e fazer com que mais sangue pudesse ser derramado, sendo a lei mosaica colocada em prática - “olho por olho, dente por dente”. Olha aí o Velho Testamento do Deus Vingativo de novo atuando.

Empatia não é assassinar aquele que te desagrada. É lidar com o desagrado de quem lhe desagrada para que seja possível - ele e você - caminhar juntos. Se o desagrado do outro é tão grande que te desagrada, então pula fora. Se preserve. Tudo nessa nossa vida louca se coloca como efêmero, passageiro e transitório. Em vez de matar quem te fere, por que não se ajustar e buscar novas oportunidades? Pode parecer estranho o que direi, mas isso é um ato de amor. Amar o amigo é super fácil, tá ali do lado mesmo, acessível ao cafuné; agora, vai tentar dar um abraço afável naquele que te olha torto - isso, é ele que te olha torto, é ele que te abomina; por uma questão energética, que tal você (pode até não passar a gostar, mas) não emitir mais ondas vibracionais densas e escuras? Vai abrir o seu horizonte para outras formas de lidar com tudo e com todo mundo. Isso já é minimamente um ato empático.

Odeie e será odiado. Lei de ação e reação - ou, como diz BNegão, “tudo é vai e volta”.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Onde vivem os monstros?

Em 2009, 2010 ou 2011, não estou muito certo (sei que era fevereiro), fui ao Shopping Ponteio para assistir a Onde Vivem os Monstros. Era o único lugar que, à época, estava ainda exibindo o filme - eu não sou cinemaníaco a ponto de querer ver filme em estreia, me é incômodo. A sala estava vazia, havia no total menos que 10 pessoas. E, se não me engano, era um dos últimos dias em cartaz.

Depois de um bom tempo, resolvi assistir ao filme novamente. Agora, era 2014. Assisti em casa mesmo - graças aos meus 10 mega liberados, consegui rapidamente baixar e vê-lo na minha slim TV de 39 polegadas. (Deixa eu parar com a zueira que o assunto é sério...)

Quando eu vi o filme no cinema, uma singela lágrima escorreu no meu rosto. Quando o revi, não cheguei a chorar, mas senti uma comoção muito forte e intensa.

O filme se passa em um contexto de conflitos. Um garoto que não consegue se enquadrar, se identificar numa dada realidade, acaba tendo acesso a uma realidade paralela. Sem spoilers, o que posso comentar é que o mundo do garoto é muito semelhante a cada um dos nossos mundos internos e interiores: bagunçado, contraditório e cheio de remendos.

Mas Onde Vivem os Monstros não é, pelo menos para mim, uma mensagem de esperança no sentido de "as coisas vão se ajustar". É uma mensagem que diz "cara, você tem um tanto de monstro aí dentro, convivendo com você; dê um jeito nisso se você quiser melhorar a sua vida". Os monstros são os conflitos, são os desejos, as querenças que nem sempre são realizadas (ou realizáveis). O filme, que não deixa de ter toques de surrealismo e realismo fantástico, acaba sendo mais real e realístico do que várias mensagens de autoajuda que estamos cansados de ver, ouvir, ler, assistir.

É um garoto que tem que lidar com o seu próprio mundo interior.
Um mundo interior que, diferentemente do que pensamos, é habitado.
Habitado por muita gente.
As nossas múltiplas e várias personalidades.
Ou máscaras.
Que se ajustam de acordo com o contexto, com a situação, com o momento.

São máscaras. Os monstros são as nossas máscaras. Uma hora somos bonzinhos, mauzinhos, inteligentes, burros, ignorantes, aprendizes, tudo no mesmo "eu", numa mesma mente.

Isso frita a gente de alguma forma, não?

O que nos deixa mais fritos não é a existência em si dos monstros, mas ter que encará-los e dizer "velho, para que tá chato". Para que tá chato. Eu não sou você. Eu não sou o outro. Eu sou além de tudo isso. Para de querer fazer me identificar com você. Para, monstrengo, tá chato.

(Agora, sim, um spoiler.)

Quando no final do filme o garoto sai da ilha onde estão os monstros e volta para casa, a relação com sua mãe melhora sensivelmente. Ele se sente mais disposto a ter um contato melhor com a sua mãe, que era a pedra de tropeço nessa história toda - sua mãe é separada do pai, começa a ter outros relacionamentos e (Édipo explica) começa a rolar um ciúme que desgasta tudo. Por isso ele foge de casa, chega à ilha onde estão todos esses monstrões (cada um de um jeito) e percebe que, assim como Dorothy disse, não há lugar como o nosso lar. E que lar é esse senão o nosso interior?

(Pronto. Passou o spoiler.)

Que formas podemos encontrar de nos descobrir, de nos reformar intimamente, de nos renovar a alma, o espírito, de não cair em contradições? Que formas há para que vejamos as pedras no caminho e que, ao percebê-las, não tropecemos novamente nelas?

Eu gosto muito desse filme que de infantil não tem nada - a não ser a própria interação do garoto com os (seus) monstros, que remete a algo como o que o Cristo uma vez falou: "deixai vir a mim as criancinhas". Não é no sentido da infantilização, mas no sentido de que as crianças são de uma tranquilidade e sinceridade que assusta qualquer adulto - e tais qualidades são deveras fundamentais para que se acesse o "Reino de Deus", ou o nosso próprio interior.



Felicidade nem sempre é o melhor caminho para ser feliz.
(Fala de Judith, uma das personagens.)

Eu tenho refletido um bocado sobre esse assunto de autoconhecimento. Onde Vivem os Monstros é um filme para se refletir nesse assunto. Meus monstros vivem no ego, no orgulho e na vaidade. São monstros que se reconhecem no público, que acham que estar em evidência é sinal de status, de notoriedade, de importância. Meus monstros adoram alimentar-me a fama, o "sucesso", o desejo de ter mais do que se consegue abraçar. Meus monstros são invejosos, porque não percebem que o fato de o outro ser melhor que eu é mérito do outro e que eu preciso melhorar naquilo que me compete e que me cabe - "Deus dá o frio conforme o cobertor", cantou Adoniram; o frio é justamente essa necessidade de reformulação de hábitos, de pensamentos, e tem que ter um mínimo de força para que, diante do frio, nos levantemos e busquemos (no armário ou no pé da cama) o cobertor para nos aquecer do tempo frio. Porque a gente pode, também, escolher sentir frio pelo resto da noite - se a gente sente aquela preguiça, o sono é maior, a gente nem sem mexe e prefere sentir frio que ter que levantar para nos agasalhar. Oras, quantos de nós já fizemos isso... Quantos já deixamos de lado um agasalho por mera preguiça... E preferimos sentir frio do que gastar energia para nos agasalhar.

Monstrinhos, eu sei que vocês estão aí. Eu sei que vocês querem aparecer, querem que eu os considere que vocês são eu. Podem parar onde vocês estão. Sei também que vocês não vão embora da noite pro dia e que vocês vão ficar me importunando. Tudo bem, podem importunar, mas eu também vou fazer a minha parte: quer falar, cês vão falar sozinhos!, porque eu não vou dar mais tanta trela a vocês.

De peito aberto e corpo pleno e inteiro, é preciso juntar desejo e vontade para ter essa transformação. Poxa vida, não é fácil, mas também não é impossível...

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

A posse da aposta

Foi com um misto de estranhamento e alegria que recebi uma ligação do cerimonial do Governo de Minas me convidando para assistir à posse do governador eleito Fernando Pimentel. A moça que conversou comigo queria confirmar a minha presença - a qual, claro, confirmei. Todos sabem das minhas críticas ao próprio Fernando, mas um momento como esse não poderia ser deixado de lado.

Minas Gerais foi governada por 12 anos pelo PSDB. A figura de Aécio Neves entrou para o governo em 2003, ficando até 2010 - quando se candidatou ao senado e ganhou a sua vaga; nesse mesmo ano, o falecido (porém honrado) Itamar Franco também foi eleito senador por Minas - só que Itamar faleceu e tristemente deixou seu suplente no lugar: Zezé "helipóptero" Perrella. Quando Aécio saiu, Antônio Anastasia (conhecido e reconhecido professor universitário e, segundo dizem, o verdadeiro responsável pelas ações governamentais que Aécio dizia serem dele) assumiu seu posto, perpetuando por mais quatro anos um ciclo de gestão tucana. Anastasia saiu ao senado, deixando Alberto Pinto Coelho (do aliado Partido Progressista - que, de tal, só tem mesmo o nome) no seu lugar nesse fim de mandato. Hoje, Pinto Coelho entregou a "faixa" para Pimentel.

Não posso dizer "minha nossa, que momento histórico esse!", mas eu também não posso dizer que essa posse e transferência de governo foram qualquer coisa. Porque não foram.

A entrada de Pimentel no Palácio da Liberdade, para a cerimônia de transferência do governo.
Quem assistiu à posse na Assembleia (transmitida pela Rede Minas) pôde minimamente perceber um, digamos, mal-estar por parte do atual presidente da casa em presidir a cerimônia. Dinis Pinheiro (PP, que pode ser tanto Partido Progressista como "Partido dos Pinheiros", já que sua família é uma oligarquia das mais atuantes principalmente na Região Metropolitana de Ibirité) de jeito nenhum iria se furtar a presidir a cerimônia, mas você percebia um certo... desgosto da parte dele em ter que realizar a posse do governador eleito - Dinis foi candidato a vice governador na chapa de Pimenta da Veiga, tucano rival de Pimentel nas eleições. Só lembrando que Pimentel venceu Pimenta com 52% dos votos e em primeiro turno. E só lembrando também que Pimenta estava afastado de Minas há 20 anos, morando em Goiás, e foi (no meu ponto de vista) o candidato mais despreparado dessa eleição. Mais que o Tarcísio Delgado.

Posse realizada, era a hora da transferência de governo do Alberto para o Fernando - e esse evento foi no Palácio da Liberdade. Sob um sol de rachar, acompanhei (de dentro do Palácio) a cerimônia. Na hora da troca, Pinto Coelho toma a palavra - quando o cerimonialista anunciou seu nome, o que se ouvia do lado de fora dos portões eram as mais sonoras vaias. Meio que ressentido, o ex-governador bradou, como suas primeiras palavras, "Viva a Democracia!". Bravo, Alberto. Bravo. Um tanto corajosa essa sua atitude de saudar a democracia. Mas, engraçado, seu predecessores não foram tão democráticos assim, não é? Não me alongarei nisso porque não é essa a proposta.

Tanto no discurso de posse quanto no de transferência, Pimentel reforçou que quer governar fora dos gabinetes e trazer o povão para dentro do governo. Dentro dos jardins do Palácio da Liberdade, eu vi várias pessoas. Poucos conhecidos, é claro, visto que não transito pela política partidária tão forte assim. (Impressionante: mesmo num partido que se diz de origem popular a elite branca e masculina domina...) Eu vi alguns rostos conhecidos e, ao cumprimentá-los, percebi que estão todos com a mesma expectativa que eu: de que esse governo novo possa ser uma boa aposta. Se Pimentel cumprir essa promessa de fazer uma abertura política e participativa do governo, do jeito que nós - população - desejarmos, será meio caminho andado. Se for possível que a participação popular - alijada pelos tucanos - seja o carro-chefe, pode não ser que Minas Gerais se torne um estado ímpar, mas pelo menos diferente do que está com certeza ficará.

(Não, gente, eu não tenho ilusões de que vai ser polianisticamente lindo o governo, mas é preciso haver demonstrações claras de vontade política para o início de uma abertura, de uma transformação. Não se muda nada da noite para o dia, o processo é lento, mas estamos apostando nesse processo; como sociedade civil, eu e as outras pessoas que no Palácio da Liberdade estivemos não estamos cegos com uma crença de que Pimentel vai transformar água em vinho. Tomara que, minimamente, a água não caia em volume morto.)

O governador eleito. O colar da inconfidência, na simbologia da transferência, significa que
- agora sim - ele é governador de fato.

Não se iluda e nem me iludo que a eleição de Fernando Pimentel é uma "virada contra o neoliberalismo", por exemplo (como disseram algumas pessoas) . Ilude-se quem sonha com isso, já que Pimentel é tido como "o mais tucano dos petistas". Todos estão confiando e desconfiando, porque o jogo político requer de nós muita atenção. Porque ninguém esqueceu do filhote de cruz-credo que ele deixou aqui em Belo Horizonte em 2008 - que "começa com M e termina com ERDA". Porque o secretário de Defesa Social que Pimentel colocou é uma pessoa que merece vigilância e, a priori, desconfiança. Não são poucos os motivos para isso, mas não quer dizer que vou ignorar a existência deles e fazer um apoio incondicional ou ver para todos esses defeitos e cagadas e largar para lá, sem deixar a minha contribuição. Por vários motivos, eu estou plenamente consciente que meu apoio ao atual governo é um apoio crítico: vamos em frente, mas olhando para os lados. Sabemos do potencial dessa virada. É a primeira legislatura do PT em Minas Gerais, com uma eleição ganha em primeiro turno - o simbolismo disso é interessante. Podemos enxergar uma mínima mudança "no estado do nosso Estado", como disse Pimentel na posse. Eu também entro no rolê de querer contribuir para isso. Mas, como se diz em Minas, "devagar com o andor que o santo é de barro". Vamos usar o nosso potencial desconfiativo e trabalhar. Não dá somente para ficarmos que nem hienas ("oh, céus, oh, vida").

Vou copiar aqui a fala do meu irmão Luciano Jorge, professor da rede estadual. Com ela, eu concluo meu raciocínio e convoco todo mundo que tiver a fim para somar (e petralhar).

Acho importante qualquer leitura crítica de QUALQUER movimento. Não sou iludido de querer um "We Are The World". Mas, assim, já não sou nenhum menino de achar que tá de boa sair no tapa com todo mundo por qualquer coisa. Eu às vezes prefiro o silêncio do que a tagarelice.  
Acho que às vezes, só às vezes, falta um pouquinho de tranquilidade pra refletir e conversar (ou as duas coisas juntas...) sobre as contradições que estão colocadas. Eu ainda prefiro o encontro com a parte que tá a fim de dialogar (sem carteirada, minimamente consciente de seu lugar na sociedade e tudo mais) do que ficar eternamente no meu monólogo chato, desmobilizador, que não caminha.
E mais: nesses momentos eu ando com muita preguiça dessa esquerda ortodoxa e penso que essa é pior do que certos "religiosos" (se bem que eles pensam na revolução como quem pensa na terra prometida... Eu penso que isso é um problema). Essa ortodoxia desmerece o que pret@s, mulheres, trans e outros tantos grupos andam construindo. 
No mais, notei nesse ano [de 2014] que posso aprender com pessoas completamente diferentes, de origens diferentes, que não precisam gritar aos quatro ventos o que fazem. Elas apenas fazem o que deve ser feito. E eu acho isso valoroso pra caramba. 
Só espero que em 2015 sejamos menos sectários, mais reflexivos, encarando nossas contradições, colocando-as na mesa, assumindo nossos erros e reconhecendo a postura do outro. E, obviamente, sem perder de vista contra quem lutamos. Espero maior espaço pra reflexão, menos pontos finais e mais pontos de interrogação.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Recomeços, renascimentos

Mais um ano se finda e um novo período se inicia. Para todos nós, 2014 foi interessante, porém difícil. Pesado. Corrido. O ano passou por nós sem que conseguíssemos passar por ele. A cavalo, trotando rápido; parecia que era uma fera sem rédeas… Não podemos, entretanto, de todo reclamar.

Foi um ano de novas oportunidades, de novos aprendizados. De novas percepções da vida. Esse final de ano, que acabou acumulando muitas energias (positivas e negativas) explodiu numa catarse de emoções indefiníveis e não possíveis de ser mensuradas e qualificadas. Foi uma explosão, por assim dizer. E, já que estamos catando pouco a pouco os cacos para chegar 2015 menos quebrados, se me for possível eu gostaria de partilhar de uma reflexão.

Esse final de ano foi, pelo menos para mim, muito revelador. De que eu precisava mudar de atitude, ter mais firmeza na voz e no olhar, não (me) enganar e me esforçar para que houvesse mais amor, fraternidade e afeto. Houve muitas dessas missões com as quais falhei, feio e rude. Houve outras missões que consegui cumprir com zelo, gozo e entusiasmo até o fim, até dar cabo. No geral, foram experiências todas válidas, aprendizados inestimáveis, conhecimentos que não se adquirem apenas com o intelecto.

Foi numa das missões falhadas que uma fenda se abriu em mim. Uma fenda que, talvez, possa ser um portal para um novo tipo de conduta e de atitudes. Sim, meus queridos, eu fui uma pessoa contraditória e incoerente, que defendia um paradigma de vida e executava outro completamente diverso - quem, em vida, não se pegou numa contradição desse tipo? Magoei pessoas, apaguei histórias, tornei tudo mais turvo, obscuro e cinza. E quem que nunca cometeu uma patacoada dessas que atire a primeira pedra…

Desde então, surgiu uma (nova, mais uma) oportunidade de reflexão. “Poxa vida, será que é isso mesmo? Que sou assim e não vou mudar? O que será?” Várias foram as perguntas que passaram na minha cabeça desde então. Por que sou assim? Quando que comecei a agir assim? Qual é a minha questão? Por que eu sou esse problema?

Nesse tempo, algumas questões submergiram. Outras ainda estão no limbo do subconsciente.

Quando eu parti para uma tentativa sincera de autorreconhecimento, eu senti um pouco de medo. De me reconhecer naquela forma nefasta e não querer me identificar com aquilo. Mas um ponto a analisar: eu não sou a forma nefasta que se apresenta em público. É só mais uma de minhas muitas máscaras, que uso por ter medo de ser eu. Medo de ser eu. Medo de ser eu.

Medo de ser eu, um temor que me persegue desde muito tempo. Desde a infância, quando eu não podia ser o moleque chorão porque homem não chora, e eu já era “hominho”. Desde a adolescência, quando eu - preto, não oriundo de favela porém pobre, com dificuldade de dicção - procurava ter algo de relacionamento e todas as meninas que eu desejava me desdenhavam. O que concluí, então? Que o problema era eu. Euzinho. Eu não tinha como ser eu mesmo porque eu não sabia ser eu mesmo. Eu não sabia, apenas seguia um certo padrão - ou tentava seguir; pelo menos no Colégio, até a sétima/oitava série (8º e 9º ano atuais do Ensino Fundamental), havia um desejo pela imitação, pela cópia de quem parecia que “dava certo” lá. Quem eram os “tops”; quem ficava com todas as gurias; quem ia nas festas; quem era popular e reconhecido nos corredores como “os caras”. Uma mímese, uma tentativa de imitação barata de quem, hoje reconheço, não cabia e nem valia a pena imitar. (Contemporâneos meus de Colégio entenderão isso.)

Havia um pequeno nicho de identidade em mim, mas não se sobressaía. Eu ainda sentia um pouco daquela opressão de querer ser igual aos outros, mesmo que isso me anulasse. Mesmo que isso gerasse um apagamento do meu jeito de ser, de olhar, de falar. As reprimendas (inconscientes) foram muitas, e de alguma forma eu ainda (mesmo com 28 anos) as sinto. Percebo-as em vários momentos, em várias situações; mesmo assim, faltava um pouco mais de vontade e coragem para encará-las de frente. Uma encruzilhada se revelava para mim. Eu, que sempre estimulo os outros a tomar as rédeas das suas vidas; que sou deveras confidente e confiante em perceber as especificidades e necessidades dos outros; eu, que me ocupava mais dos outros que de mim, fui fraco em admitir que sou fraco. Uma carapuça de fortaleza eu coloquei, e usei como se fosse meu potencial energético de vitalidade. “Sou foda”, diria eu num momento de ego inflado. E não é que eu não seja bom naquilo que faço, mas um bom ego que se preza vai se alimentar de uma vaidade de querer ser visto e reconhecido e vai ofuscar outros elementos igualmente importantes no trato humano - como o amor.

Há várias, várias definições para essa palavra de quatro letras. Prefiro a definição que tem a ver com ter o outro (o alter) em mais alta conta, com o mais alto grau de afeto e sensibilidade; simples e suave coisa que nos amadurece, diria João Ricardo (Secos & Molhados). Vários nomes tentam defini-lo, várias pessoas tentam nominá-lo. Eu apenas sinto e não sei definir… Tem várias formas de mostrar amor, afeto, carinho e sentimentos afins - fico me perguntando, seriamente, qual deve ser a minha concepção de amor, visto que ando tão desastrado e atrapalhado na sua forma de demonstrar que… sei lá, rola um cansaço, mas não me faz desistir de encontrar um caminho.

(Não leve em conta o último trecho, pessoa; estou em um momento de chacoalhamento espiritual, logo algumas coisas aqui podem te soar confusas mesmo.)

O que fazer então diante de tal quadro internamente desesperador? O que fazer quando vem alguém e lhe arranca a máscara, jogando-a fora e encarando você como deveria acontecer? Há duas saídas: ou você busca de volta a máscara e a veste de novo ou esquece dela e tenta encarar a vida sem ela. Mais fácil a primeira alternativa (da qual eu várias vezes, preteritamente, já fiz uso), porque dá conforto e tranquilidade de você continuar do jeitinho que está, sem se preocupar com nada; você não tem que mudar nada porque você não aparenta nada para mudar, não é? Então, continuemos do jeito que está. Agora, optar pela segunda saída é difícil. Exige uma das coisas mais difíceis, que nem Freud consegue explicar tamanha dificuldade nisso: olhar para nós mesmos. (Brincadeira: com certeza Freud, Jung, Lacan e cia. têm, sim, explicações que nos revelam por que não conseguimos olhar para nós mesmos.)

Imagine-se numa casa. Do lado de fora toda pintada, arrumada e ajeitada. Quem passa do lado de fora deve pensar que aquele é um local muito agradável, gostoso de permanecer. Para você ter acesso à casa, você precisa ter acesso ao dono da casa - e, se do lado de fora ela parece um lugar fofo, por dentro ela pode parecer a casa da velha dos gatos dos Simpsons: uma zona. Sofá estragado, chão sujo, móveis empoeirados, lixo acumulado e uma pessoa maluca toda hora dizendo “num repara a bagunça, não”. (Quando a pessoa diz isso aí que mais reparamos, né?) Pode ser que a pessoa esteja mudando os móveis de lugar, fazendo um faxinão (daqueles que se faz no fim do ano), consertando algumas coisas dentro de casa para poder estar tudo organizado novamente. Isso é bom; ruim quando essa bagunça é permanente - desorienta qualquer um que chega para tomar pouso ou tomar um café. Faz com que o visitante se sinta deveras incomodado e parta sem ter mais previsão de volta.

Hoje, eu tenho que admitir que a minha “casa” está zoneada, mas que não ficará assim ad eternum. Tô precisando mudar algumas coisas de lugar, descartar os lixos sentimentais, abrir as janelas para deixar as luzes entrarem. Pode não parecer, minha gente, mas eu adoro receber visitas! Principalmente das pessoas que nos amam, que nos querem bem. Tem aquele negócio também que, quando você e a visita se tornam íntimos, você vai meio que se “descuidando” da casa, não tendo tanta preocupação assim de tê-la limpa, porque a visita vai entender que você esteve atarefado fora ou preocupado demais em recepcioná-la, daí nem lembrou de pelo menos passar um pano no chão… O acostumar-se a uma condição é pernicioso, porque pode fazer com que a casa vire uma eterna bagunça. As visitas podem se sentir intimidadas e não mais querer visitar sua humilde residência. Você diz que vai limpar a casa só para recebê-las; mas ao passar do tempo vai, novamente, deixando a casa em segundo plano, porque outros planos estão em primeiro lugar - as visitas, por exemplo; tanto de receber quanto de ir visitar.

Peguei essa metáfora para tentar evidenciar essa metamorfose que anda acontecendo comigo. Eu perdi uma visita (que estava quase fixando residência já), dessas que você adora receber em casa, porque meu cantinho tava uma confusão que só. E eu deixando de lado, deixando de lado, deixando de lado. E deixando de lado. Os entulhos foram se acumulando aos montes. A poeira foi só aumentando. Ficou intragável de receber as pessoas. Ficou impossível de essa visita entrar. Desde então, minha missão foi de olhar para a casa e dizer: “é hora de arrumar essa bagunça”.

Não hei de comentar aqui que passos dar para isso. Apenas estou arrumando. Haja força para poder começar. Olhar para si mesmo não é uma tarefa simples. Espero que 2015 seja o ano da casa arrumada. Que você possa vir me visitar, até mesmo fixar residência se quiser, com a residência transmutada em lar. Estarei inteiro para te receber.