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sábado, 10 de janeiro de 2015

Fugas para debaixo da cama

Se houve em algum momento da minha vida algo que fosse preponderante, esse algo era o medo.

Medo de apanhar, medo de perder o ônibus, medo de tirar nota baixa e apanhar por conta disso, medo de ser xingado por ter tirado nota baixa, medo de ser repreendido por ter chegado atrasado num compromisso.

Medo como fator de reticência diante de um ato ou de uma ação é até sadio. Eu tenho medo de pular de uma pedra numa cachoeira ou num lago porque tenho medo de bater a cabeça e me tornar um M. Rubens Paiva, paralítico.

Conheço pessoas que têm medo patológico de água. De mar, na verdade. Vão à praia e sentam à beira de onde a onda quebra. Quando a água vem, mesmo se tiver vindo fraca, a pessoa sai correndo, com medo do mar. Tal medo deixa a pessoa afastada desse contato tão benéfico com as águas de Janaína.

Medo, o oposto da coragem. Fui um moleque medroso, pelo do que consigo me lembrar. Havia figuras que passaram na minha vida que eu tinha o mais puro medo. Dona Marlene, ex-diretora da escola onde cursei de primeira à quarta série, era uma figura que me dava medo. Na época, com oito anos e na primeira série, ver seus cabelos ruivos tingidos e sua aparência nervosa me causava certo incômodo, certo medo de vê-la por aí.

Como eu tinha medo de apanhar. Pelo medo de apanhar, não era de fazer muita peraltice. Quando eu fazia uma coisa mínima - chegar atrasado 10 minutos ou deixar alguns bagos de feijão no prato -, a bronca era certa. Meu medo de ser punido também. Seja pela punição verbal, seja pela punição física, eu tinha medo de encarar meu algoz. Não, não era necessariamente um inimigo, mas sim um carrasco. Mesmo os nossos carrascos nos amam e demonstram esse amor por maneiras tortuosas e que não conseguimos compreender a priori. Esse algoz sempre falou mais alto, sempre se impôs, sempre quis se dar ao respeito. Sempre me botou medo.

Sempre me botou medo. Não me sentia seguro em me relacionar com as pessoas por medo do que os outros poderiam achar - e se meus pais vissem eu brincando com Fulano, que é filho de Sicrano, mó puxador de fumo?

Não me esqueço do dia que saí para jogar bola e não cheguei em casa no horário combinado. Ainda tentei levar um ex-amigo meu (hoje é ex-amigo, que me sacaneou durante a juventude; mas estou trabalhando pela sua liberação e que eu me libere de quaisquer sentimentos negativos em relação a ele) para amenizar a situação. As correias cantaram em dobro. O couro literalmente comeu as minhas costas. A autoridade se imperava, não tinha conversa. Pisou na bola? É castigo! Dos mais grossos, dos mais pesados! Correia e preencher um caderno escrevendo quinhentas vezes a mesma frase.

Não era do castigo em si, talvez, que eu tivesse medo. Mas da reação daquele que me o impingia. Era sempre uma reação muito dura, pesada e inflexível, de conversa e/ou tolerância zero.

Havia algumas situações onde eu "aprontava" - poderia ser uma má resposta, por exemplo - e eu, para me esconder, ia para debaixo da cama. Via os seus pés, passando de um lado a outro me procurando. Às vezes, usava um cabo de rodo ou de vassoura para me forçar a sair de lá de baixo. Ou (pode isso ser minha imaginação, OK?, eu não tenho certeza dessa imagem) se abaixar e jogar o chinelo para me acertar. Ou me ver e coercitivamente pela fala me obrigar a sair de baixo da cama. Saia de baixo da cama agora. Sai daí agora, seu moleque. Seu [não, não compensa ficar repetindo isso...].

Embaixo da cama não era necessariamente um refúgio seguro. Mas era para onde o medo me levava naquelas circunstâncias. Era medo que me empurrava para lá, um medo irracional contra um algoz idem. Um medo sem medida, cujo único parâmetro era a minha preservação, um instinto de sobrevivência que me chamava loucamente. Corre, se esconde. Mas, como se percebe, não durava muito tempo e eu sempre, sempre era descoberto.

Sempre era achado debaixo da cama. Sempre eu era retirado à força (da voz ou física) de lá. Sempre (ou quase sempre) havia uma reprimenda - verbal, moral, psicológica ou física. Por quê? Porque eu desobedecera. Por eu ter contrariado as regras.

Mas embaixo da cama, fora desses momentos de tensão, era um lugar que às vezes eu visitava. Não me lembro exatamente os motivos, se era alguma brincadeira comigo mesmo, mas essa imagem de eu estar lá de baixo e ver os pés passando à minha frente me traziam alguma coisa de afinidade - não digo conforto, porque não é confortável um alérgico ficar num ambiente deveras poeirento como embaixo de uma cama. Como se fosse uma caverna, um esconderijo, um refúgio que, mesmo não sendo meu, era onde eu me encontrava. Ou fingia que me encontrava. Ou brincava de me encontrar. Ou não me encontrava, apenas ia - pra que vamos ficar dando respostas a tudo nessa vida? Deixa as lembranças virem, depois a gente vê o que faz com elas...

Mas retomando: medos irracionais me fizeram ir lá para baixo. Para o ambiente insalubre e poeirento. Fugas, sumiços, formas de dizer "estou com medo" - ou "não tenho coragem" de enfrentar o algoz que está à minha frente. Me deixe aqui, diria eu a ele, inocentemente. Mas ele/eu não sabe/sabia que o algoz sempre puxa sua vítima para fora dessa caverna, dessa gruta, desse esconderijo. Sempre o algoz vai te expor, mesmo que seja a você mesmo, e fazer você se encarar como uma pessoa miserável, que não presta, que no menor erro acaba com tudo.

Somente eu que não consigo encarar o algoz que seria tão covarde a ponto de me esconder debaixo de uma cama. A cama onde dorme meu algoz. Não a minha cama.

Relembrar essa imagem de estar embaixo da cama, retomá-la me faz reanalisar essa questão do medo/coragem. Que por muito tempo eu tive medo de muita coisa - e digo que ainda tenho, mas pelo menos tô buscando coragem para poder encará-los de frente. Não posso mais utilizar esse refúgio de uso pueril, infantil, esse recurso, esse subterfúgio da brincadeira de se esconder sabendo que vai ser achado. Se é o algoz ou não, em algum momento eu serei achado e exposto pelo o que sou - não pelo o que representativamente pensou que posso ser.

Estou visualizando a imagem que eu tinha quando me escondia: as duas pernas quadradas de madeira da cama, o estrado com uma tábua branca larga no meio para suportar o peso, o colchão fino porém confortável. Virando 180 graus, a tomada onde o rádio relógio ficava ligado, as outras duas pernas quadradas da cama, a parede. Certa escuridão que não é total por causa da luz amarela da lâmpada incandescente que ilumina o quarto. Há passos, vejo pés passando à minha frente. Parte do lençol cai pelos flancos, mas não chegam a se arrastar no chão. Só tampam um pouco a minha visão, como um véu tampa os olhos da noiva.

É dada a hora de dar o chega. Que bom que tal lembrança me veio na mente. Então vamos liberando tudo isso, eu não preciso mais me esconder debaixo da cama. Não quero mais me esconder embaixo da cama, é empoeirado e eu espirro. É insalubre.

Eu já não uso mais o espaço embaixo da cama.

Não dá mais para me esconder embaixo da cama.

Mesmo porque eu cresci, e não caibo mais embaixo da cama.

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