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terça-feira, 29 de abril de 2014

Sobre elevadores e bananas

Demorei para reagir aos comentários sobre a campanha #somostodosmacacos. A bem da verdade, fiquei mais away que o Gil Bróder esse fim de semana e perdi o fio da meada. Mas, na noite de ontem, pude compreender o contexto da situação. Em suma: Daniel Alves, do Barcelona, jogando; jogam nele uma banana; ele vai e come a banana; a comoção nacional toma conta e uma campanha é lançada, dizendo que somos todos macacos. Aí, vêm as vozes da dissonância, dizendo que não somos macacos. Mas, peraí, qual é o motivo de toda essa confusão?

Pode ser que o ato do Daniel Alves de comer a banana tenha sido um protesto irônico. Tristeza mesmo foi o que se seguiu. Uma branquelada que nunca tomou geral na vida se "afirmando" enquanto macacos para contribuir na luta contra o racismo.

Como diria Renato Russo, "isso é uma contradição em termos".

Presta atenção, rapaziada e moçada. Jogar uma banana para alguém (geralmente negro) implica, histórica e culturalmente, atribuir à pessoa uma simbologia: de que aquela pessoa a quem você joga a banana é um... macaco. Sim, a gente tem na nossa cabeça, psicossocialmente falando, a imagem atribuída de que quem come banana é macaco. E que macaco, segundo as leis de Charles Darwin, são seres vivos anteriores a nós no processo evolutivo. Se são anteriores no processo evolutivo animal, significa dizer, por conseguinte, que macacos são "inferiores" aos seres humanos. Eis o primeiro erro (erro primário, eu diria) de promover uma campanha com as pessoas se atribuindo à imagem de macacos: elas se julgam inferiores, menores, "sem importância" dada a posição na qual o homem se coloca frente à escala evolutiva. É isso mesmo, não é? O homem não é o ser que, por ter consciência, se considera mais evoluído que os outros do reino Animalia?

Pois bem. Dado esse ponto, vamos ao segundo ponto - e talvez o mais invisível porque existe uma cegueira social (inconsciente, eu diria) que não consegue enxergar que... o racismo existe, oras! Sim, caríssimo Gigante Que Acordou Mas Voltou a Tirar a Soneca, essa coisa de discriminar o outro pela cor ainda existe na nossa Pindorama de Vera Cruz - por mais que Gilberto Freyre diga o contrário. Se eu estou, por exemplo, discursando num púlpito público e alguém me joga rosas, eu socialmente considero isso como um ato de carinho e afeto. Se me jogam um sapato, vou considerar que estou desagradando.

Se me jogam uma banana, estão me chamando de macaco. Se me chamam de macaco, significa dizer que me chamam, conforme a teoria acima exposta (do Darwin), de "raça inferior". Para se ter alguém que considere o outro "inferior", é necessário que haja alguém que se encontre em posição de "superioridade". Oras, inventamos, então, com dominantes e dominados, uma relação de poder! Veja bem! Daí, posso inferir, de acordo com o que eu expus aqui, que jogar uma banana é um ato racista. Porque considera o outro como macaco - e, para quem ainda não sabe, sempre se atribuiu ao negro (o dominado) pelo branco (o dominante) a figura do macaco. Do preto que parece macaco. Nunca vi nenhum neguinho branco (sem trocadilhos) sendo humilhado de macaco. Macaco, meus caros, é humilhação, não é brincadeira.

É humilhação porque é um tratamento que te deixa inferiorizado a outra pessoa. Não existe relação de equidade quando você coloca o outro como inferior. Quando você tem o dedo apontado e te chamam de toda a sorte de vexames, como macaco, cabelo-de arame, cabelo-duro - Itamar Assumpção tem uma ótima canção sobre essa questão. Por isso, onde que se chamar de macaco pode ser uma forma de combater o racismo, que se manifesta justamente em chamar o outro de macaco? É usar veneno para cuidar da moléstia causada pelo veneno. Uma retórica sem fundamento retórico. Pura coisa de miolo-mole, melhor dizendo.

Daí, refletindo sobre essa questão, vendo opiniões de vários amigos (que postaram textos pró e textos contra a campanha), me lembrei de uma questão que eu tenho observado com frequência e que traduz a persistência do racismo como elemento cultural brasileiro: o elevador.

As primeiras vezes que reparei nessa questão foi depois de ouvir "Identidade", esse pagode deveras excelente interpretado pelo Jorge Aragão. A questão do racismo é evidenciada na música a partir do momento que se coloca em questão (ou xeque) a existência do elevador de serviço e do elevador social. Os mais antigos que nos falam que os serviçais (faxineiros, empregadas, etc.) só podiam se utilizar do elevador de serviço para transitar nos prédios onde trabalhavam. (Em vários desses prédios ainda existe a Dependência Completa de Empregada - DCE, que nada mais é que a reprodução da senzala no século 21; mas isso fica para outro texto.) Fico pensando, fazendo essa relação entre elevadores e bananas, se usar o elevador de serviço aumenta em alguma coisa a significação da luta contra o racismo.

A música me faz lembrar da figura do Preto de Alma Branca, do capataz mulato que segue as ordens do feitor eurodescendente. E de como essa figura ainda é numerosamente grande na sociedade.

Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade

O feitor implementou a campanha #somostodosmacacos e o capataz seguiu obedientemente as ordens. Acho que, por uma inconsciência coletiva ou por uma cegueira social, faltou perceber que os principais promotores da campanha são pessoas que com toda a certeza não sofreram do racismo, da discriminação que pessoas como eu passam cotidianamente. E quem seguiu com a campanha não percebeu que se colocou numa posição inferior e, sim, de racismo. Não faz diferença o feitor pegar o elevador de serviço, mas será que dá na mesma se o capataz pegar o elevador social?

Pense nisso. E pense também que luta contra racismo se dá na subversão da ordem - não na conformação e aceitação dessa ordem. Aceitar e mostrar uma banana é engolir em seco esses quinhentos anos de perversão que é o Brasil.

Em tempo: o Idelber Avelar mandou avisar que tem blog novo na área, que vale a pena ser lido: o blog do Paulo Cezar Caju, um dos pretos mais aguerridos no futebol e, sim, tem histórico no combate à opressão. O blog chega num momento deveras importante no qual queremos mais Caju e menos Pelé.



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