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segunda-feira, 8 de julho de 2013

Que horas são?

Todo dia, Daniel costumava fazer seu ritual habitual: acordava, tomava banho, escovava os dentes, tomava café, dava um beijo na esposa, pegava a valise com os papéis do escritório, pegava a chave do carro, dava a partida no carro, abria a garagem pelo portão eletrônico, saía do prédio, despedia-se do porteiro, fechava o portão, seguia ao trabalho.

Ele sempre estacionava num estacionamento próximo do trabalho. Já combinou com o cara de lá para pagar um mensal de 250,00 pela vaga. Chegava para trabalhar às 9h30, saía invariavelmente às 19h. Trabalhava em um escritório de contabilidade - ou seja, a parte mais chata quando você tem dinheiro. Várias declarações de imposto de renda já passaram pelas suas mãos. Vários clientes importantes já passaram pelo escritório onde trabalha, de sobrenome tão nobre quanto nome de cartório em Belo Horizonte. Porque em Beagá, saiba: se você tem cartório, é porque você é um fodão. Não é qualquer um que tem culhões suficientes para ter um cartório. Olha só o sobrenome: Triginelli; vê lá se isso é sobrenome de mortal? No mínimo, o sobrenome de um italiano que chegou ao Brasil e, às custas de seu trabalho (leia isso com duplo sentido), conseguiu ganhar alguma coisa na vida. Tem um rico empresário na cidade que é de origem italiana, tem lá seus amigos na política e conseguiu ficar mais rico do que já é graças ao seu trabalho (leia isso com duplo sentido). A empresa desse moço da Itália também tem conta no escritório de Daniel.

O escritório de Daniel ficava num imponente prédio espelhado de 25 andares na região centro-sul. Próximo à saída do prédio, sempre tinha um moço que ficava sentado na porta, contemplando sabe Deus o quê. Era um moço não muito velho, já devia ter seus quarenta anos, mas talvez a vida nas ruas tenha-lhe precocemente envelhecido o corpo. Porém, o espírito não caducara. Saía sempre à cata de algum material que pudesse encaminhar ao ferro velho e fazer uma graninha com ele. Sabe como é, colaborar em casa. A casa dele nada mais era do que a marquise de um prédio vizinho ao de Daniel; de praxe, ele costumava chegar perto da portaria e tentava abordar alguém. De praxe, sempre tinha um armário de dois-por-dois, também conhecido como "segurança", que barrava o contato dele com o mundo dos negócios do qual Daniel vivia.

E o segurança nunca deixava o moço se aproximar. Seja temendo que ele invadisse o prédio, seja porque achasse que ele não era uma pessoa que devesse frequentar aquele espaço.

Num dia desses, Daniel saiu da sua rotina. O carro foi pro conserto e resolveu ir de ônibus. Ao chegar perto do seu trabalho, sob a desproteção de um segurança que somente atua na portaria de um prédio cheio de executivos, o moço que está nas ruas abordou Daniel.

Daniel deu um sobressalto e logo já disse:

- Eu não tenho nada. Desculpa aí.

Um outro rapaz, que também trabalhava no mesmo prédio de Daniel - mas não no mesmo escritório; inclusive, ele tinha hábitos diferentes do de Daniel: sempre ia de ônibus, preferia quebrar a rotina às vezes, não tinha uma vida estanque - estava logo atrás dele. Foi igualmente abordado pelo moço da rua, e seguiu o mesmo "caminho" de Daniel":

- Desculpa, moço, mas eu não tenho.
- Mas não é isso. Quero saber se você tem horas.
- Como?
- Cê tem horas? Que horas são?
- Ah, são nove e quinze.
- OK. Obrigado.
- Só isso?
- É, só. Valeu.

Era só isso, pensou o rapaz abordado. E ele pensando que era outra coisa.

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